Opinião

Artigo: Cultura ou culturas?

Muito embora no mais das vezes o termo cultura seja empregado como entretenimento, ele possui vários sentidos interligados. Polissêmico, o diferente uso de cultura não é mero recurso linguístico destituído de sentido ou significado. O Estado, ao tratá-la apenas como financiamento de shows, filmes e peças teatrais, nos faz ver apenas a face mais visível: o meio artístico. Porém, principalmente por ser apropriado pelo Estado para uso em políticas públicas, devemos esclarecer melhor e permitir evidenciar as diversas possibilidades (de uso) e significações conforme o contexto em que se pretende intervir.

Trabalhamos dois outros significados: 1- cultura como formação do homem, para conhecimento de si e do mundo; realização da vida em comunidade, onde se estabelecem relações entre o indivíduo e a vida coletiva, significado que conduz ao conceito de cidadania. Aqui, a difusão de regras de ação social possibilita renovar a vida social e individual, a viver de forma melhor no mundo. 2- cultura como produto dessa formação, quando se refere ao conjunto dos modos de viver e pensar, normalmente indicados pelo termo civilização. Esse conjunto dos modos de vida é coletivo e anônimo, sendo criado, adquirido e transmitido entre os membros de uma sociedade e de uma geração para outra. Persiste no grupo social e nas instituições que o definem, daí a importância de reconhecer os hábitos, papéis e as tradições envolvidos.

O campo de atuação dos entretenimentos articula-se com os dois outros campos, bem maiores, pois que definidores de amplos valores irradiados para o conjunto dos campos existentes na sociedade. No que diz respeito à sociedade brasileira, sofrem variações historicamente determinadas e são também estruturalmente plurais. Ou seja, longe de ser homogênea, a sociedade brasileira (e suas riquíssimas variações culturais) é composta, desde a origem, de diversos grupos de indivíduos. São várias as origens europeias (dos povos ibéricos da época colonial e outros mais recentemente), africanas (povos de diversas etnias e costumes), americanas e orientais, religiões (predominantemente cristã, mas comportando judeus, muçulmanos e outras), e vários povos originários ainda presentes no Brasil. A diversidade de grupos não se faz presente apenas na produção e na economia, mas exercem também forte impacto sobre a sociedade geral a partir de suas culturas. Desnecessário dizer qual é o reflexo disso na nossa mentalidade.

Apesar de serem brasileiros, esses grupos só são autônomos porque mantêm uma cultura que lhes confere identidade, com possibilidade de descobrir um eu interior que não seja imposto artificialmente. Mostrar um novo elemento do ideal de cultura é ampliar (não reduzir) o caráter com que o Estado domina o campo da cultura, reconhecer e dar voz aos diversos campos culturais no interior da sociedade. É necessária uma cultura geral que suscite interesses, que contribua para enriquecer a personalidade e dotar o indivíduo de condições de ver o outro e de dar coesão à sociedade. Esse é o padrão para o futuro, que no caso brasileiro significa entrelaçar culturas (em vez de somente cultura), capaz de fazer um Brasil bem brasileiro.


*Mourad Belaciano é médico e professor da UnB, criou e dirigiu a Escola Superior de Ciências da Saúde do DF (Escs)