Opinião

Artigo: Os riscos de retrocesso na Guiné-Bissau

Na crise atual, é imperativo que a elite política e militar do país, em unidade, construa soluções baseadas nas próprias institucionalidades

Desde a independência em 1973, liderada por Amílcar Cabral – idealizador de uma das mais bem-sucedidas lutas pela libertação colonial do século 20 e herói revolucionário da emancipação do povo africano –, a Guiné-Bissau, pequeno país da costa ocidental africana, vive um ciclo de instabilidade política, reforçado pelo sistemático exercício de representação negativa do país pela comunidade internacional.

A adesão à democracia liberal ocorreu na década de 1990, como resultado do golpe de Estado de 1980 quando o país abandonou os objetivos socialistas que inspiraram as lutas pela independência, engajou-se nos programas de ajuste estrutural e abraçou o modelo de desenvolvimento liberal.

A Guiné-Bissau realizou seis processos eleitorais democráticos, contudo, só um governo eleito concluiu o mandato – o do presidente José Mário Vaz (2014 a 2019). A gestão conturbada teve como pano de fundo o conflito com o Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (Paigc), e o descumprimento das regras democráticas em sucessivas nomeações de primeiros-ministros são alguns dos elementos presentes no quadro de instabilidade do país.

O ano de 2020 começou em meio a uma crise institucional por suspeitas de fraude no segundo turno do processo eleitoral para a Presidência da República, ocorrido em 29 de dezembro. Desde 3 de janeiro, o resultado das eleições presidenciais está sub judice perante o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em razão de ação interposta pelo candidato Domingos Simões Pereira, do Paigc, que questionou o resultado provisório anunciado pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE), que atribuiu a vitória a Umaro Sissoco Embaló, do Movimento para a Alternância Democrática (Madem G15).

Ao arrepio das normas guineenses que suspenderam os efeitos do resultado eleitoral enquanto tramita a ação judicial e da posição da Assembleia Nacional Popular (ANP), subsidiada pela comunidade internacional representada pelo Grupo P 5 (Nações Unidas, União Africana, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, União Europeia e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), assim como à revelia da regra constitucional que estabelece a competência e o rito para a posse presidencial, Sissoco foi investido no cargo de presidente da República em 27 de fevereiro.

Desde então, a ANP, partidos políticos, lideranças políticas e intelectuais guineenses denunciam a inconstitucionalidade da posse, assim como a nulidade dos atos daí decorrentes como a demissão do primeiro-ministro Aristides Gomes, indicado nas eleições legislativas de março de 2019 pela ANP, assim como a nomeação de primeiro-ministro Nuno Nabian, em usurpação das competências da ANP, estabelecidas na Constituição da Guiné-Bissau.

Lamentavelmente, segundo várias denúncias e matérias veiculadas pela imprensa internacional, esses atos ocorreram sob o amparo das Forças Armadas, que vêm protagonizando atos de ocupação de prédios públicos, invasão de residências de ministros de Estado, de ameaças a parlamentares e, mais preocupante, da ocupação do STJ, inviabilizando que o órgão cumpra as funções judicantes e resolva o impasse eleitoral.

O presidente interino indicado pela ANP, conforme determina a Constituição guineense, deputado Cipriano Cassamá, renunciou ao cargo em razão de ameaça à sua vida e à sua família, conforme denunciou no ato de renúncia. Esse quadro ensejou a denúncia internacional de um golpe de Estado no país. Com efeito, partidos políticos que constituem a maioria parlamentar da ANP, lideranças políticas, ministros e intelectuais no país denunciam a posse inconstitucional do presidente e do primeiro-ministro e a violência perpetrada pelas Forças Armadas como golpe de Estado com apoio militar que estaria em andamento desde 27 de fevereiro.

O candidato Sissoco e membros de seu governo defenderam a legalidade da posse, e as Forças Armadas negaram estar à frente de um golpe de Estado. Em um contexto de normalidade democrática e constitucional, aguardar a decisão judicial é o único caminho que assegura a legalidade do pleito e a legitimidade da posse do vencedor, seja ele quem for. Essa tem sido a posição da comunidade internacional. Efetivamente, o Grupo P 5 vem se pronunciando no sentido de esperar a posição do STJ e instando a neutralidade das Forças Armadas.

Como diria Amílcar Cabral, a luta pela reconquista da personalidade histórica de um povo perpassa pela coragem de assumir o protagonismo de sua história. Na crise atual, é imperativo que a elite política e militar do país, em unidade, construa soluções baseadas nas próprias institucionalidades. Não há saída que não seja por meio das vias democráticas e legais escolhidas pelo povo guineense quando decidiu aderir à democracia e viver sob a égide do Estado de Direito.

De outra forma, veremos se iniciar novo ciclo de estado de exceção no país, o que pode ensejar longa e profunda intervenção militar – que poderá descambar para ditadura ou mesmo para guerra civil – ou ainda longa intervenção internacional ou, talvez pior, excepcionalidade constitucional normalizada, como já estamos vendo em Bissau e em algumas partes do mundo.

*Professora de direito da Universidade Federal do Sul da Bahia. Pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné Bissau