Quem se lembra da história percebe que assistimos à repetição de uma tragédia: o descontentamento da população com os parlamentares, a polarização de forças políticas que não dialogam, a ligação da esquerda com a corrupção, um país sem coesão nem rumo e sem inspiração para o futuro; o esgotamento do modelo de desenvolvimento depredador da natureza, concentrador da renda e dependente de recursos do Estado. Falta só um catalizador para levar milhões às ruas, e ele pode surgir a qualquer momento.
Mais uma vez me vêm à cabeça o egoísmo e a maldade das forças políticas brasileiras, de direita ou de esquerda, que temem as mudanças sociais de que precisamos. Vem também a percepção da irresponsabilidade de parlamentares na defesa de seus privilégios. Repetindo o passado, antes de 1964, no lugar da união para salvar a democracia e de oferecer um rumo para o país, os democratas progressistas preferem se dividir na disputa para ver quem vai chegar ao poder em 2022.
Se realmente querem barrar o risco de um governo autoritário, os líderes democratas-progressistas deveriam manifestar unidade, construindo um pacto pela ética, pela responsabilidade na política e pelas reformas de que precisamos. Em 1964, os que disputavam entre si, pensando na eleição de 1966, foram presos, cassados, exilados, jogando o país no abismo da ditadura. Ainda é tempo de evitar que a tragédia se repita.
Mais forte do que declarações dos presidentes da Câmara e do Senado, seria necessário um acordo histórico entre os líderes democratas e progressistas pelo Brasil. Eles deveriam reconhecer o erro da divisão e da tolerância com privilégios, mordomias, corrupção e ineficiência que têm caracterizado a política brasileira.
Sem que políticos democratas reconheçam isso, o eleitor é capaz de se submeter às manipulações dos que desejam fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Uma ditadura será produto da direita, mas a base para isso teria sido construída por nós, ao longo de 26 anos, de nossos governos democráticos e populares. Apesar das boas coisas feitas entre Itamar e Temer, passando por Fernando Henrique, Lula e Dilma, nós ainda deixamos o país com pobreza, concentração de renda, analfabetismo, baixa produtividade, educação entre as piores do mundo, recessão, desemprego, e sem saneamento, inovação, nem coesão nacional e rumo histórico. Não fizemos as reformas e ampliamos privilégios. Ainda deixamos a política como sinônimo de corrupção.
O povo não defenderá democracia apenas por sua coreografia e sua beleza estética que têm servido para manter o status quo social, com ligeiras medidas assistenciais e manutenção de privilégios. Há anos, alguns políticos alertam sobre isso dentro do Congresso.
Não haverá apoio à democracia apenas para dar emprego a deputado e senador, se os políticos não definirem estratégias para que, ao final de algum tempo, o Brasil tenha o filho do pobre em escola tão boa quanto a dos ricos; que toda casa tenha saneamento; o real permaneça estável; nossas florestas e rios, protegidos; a população com acesso a serviços públicos de qualidade, produzidos com eficiência; o Estado, comprometido com interesses do público, sem proteger mordomias, privilégios, ineficiência ou corrupção.
É preciso barrar qualquer golpe à democracia; para isso, é necessário convencer o povo a defendê-la. Mostrar que os democratas estão unidos, reconhecendo seus erros, propondo-se a moralizar o serviço público e reformar o Brasil para sintonizá-lo com a realidade do mundo em transformação em que vivemos. Tudo que não fizemos no poder, dando argumentos à direita autoritária para seduzir os militares e a população contra a democracia, como se a falha fosse do sistema democrático, e não da postura de seus líderes.
*Professor emérito da UnB e autor do livro Por que falhamos: o Brasil de 1992 a 2018