Opinião

Artigo: Coronavírus políticos

Se realmente querem barrar o risco de um governo autoritário, os líderes democratas-progressistas deveriam manifestar unidade, construindo um pacto pela ética, pela responsabilidade na política e pelas reformas de que precisamos

Muito antes do coronavírus, os políticos democráticos brasileiros evitavam apertar as mãos uns dos outros. Durante 26 anos no poder, preferiram se ligar aos políticos de direita a fazer alianças entre si pelas reformas de que o Brasil precisava. Preocupados mais com a próxima eleição do que com o país, eles e seus partidos se concentraram na disputa entre si por eleitores, deixando que isso levasse a governos com vocação autoritária. Aproveitando-se disso, políticos conservadores tentam manipular a população contra o Congresso Nacional e a democracia.

Quem se lembra da história percebe que assistimos à repetição de uma tragédia: o descontentamento da população com os parlamentares, a polarização de forças políticas que não dialogam, a ligação da esquerda com a corrupção, um país sem coesão nem rumo e sem inspiração para o futuro; o esgotamento do modelo de desenvolvimento depredador da natureza, concentrador da renda e dependente de recursos do Estado. Falta só um catalizador para levar milhões às ruas, e ele pode surgir a qualquer momento.

Mais uma vez me vêm à cabeça o egoísmo e a maldade das forças políticas brasileiras, de direita ou de esquerda, que temem as mudanças sociais de que precisamos. Vem também a percepção da irresponsabilidade de parlamentares na defesa de seus privilégios. Repetindo o passado, antes de 1964, no lugar da união para salvar a democracia e de oferecer um rumo para o país, os democratas progressistas preferem se dividir na disputa para ver quem vai chegar ao poder em 2022.

Se realmente querem barrar o risco de um governo autoritário, os líderes democratas-progressistas deveriam manifestar unidade, construindo um pacto pela ética, pela responsabilidade na política e pelas reformas de que precisamos. Em 1964, os que disputavam entre si, pensando na eleição de 1966, foram presos, cassados, exilados, jogando o país no abismo da ditadura. Ainda é tempo de evitar que a tragédia se repita.

Mais forte do que declarações dos presidentes da Câmara e do Senado, seria necessário um acordo histórico entre os líderes democratas e progressistas pelo Brasil. Eles deveriam reconhecer o erro da divisão e da tolerância com privilégios, mordomias, corrupção e ineficiência que têm caracterizado a política brasileira.

Sem que políticos democratas reconheçam isso, o eleitor é capaz de se submeter às manipulações dos que desejam fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Uma ditadura será produto da direita, mas a base para isso teria sido construída por nós, ao longo de 26 anos, de nossos governos democráticos e populares. Apesar das boas coisas feitas entre Itamar e Temer, passando por Fernando Henrique, Lula e Dilma, nós ainda deixamos o país com pobreza, concentração de renda, analfabetismo, baixa produtividade, educação entre as piores do mundo, recessão, desemprego, e sem saneamento, inovação, nem coesão nacional e rumo histórico. Não fizemos as reformas e ampliamos privilégios. Ainda deixamos a política como sinônimo de corrupção.

O povo não defenderá democracia apenas por sua coreografia e sua beleza estética que têm servido para manter o status quo social, com ligeiras medidas assistenciais e manutenção de privilégios. Há anos, alguns políticos alertam sobre isso dentro do Congresso.

Não haverá apoio à democracia apenas para dar emprego a deputado e senador, se os políticos não definirem estratégias para que, ao final de algum tempo, o Brasil tenha o filho do pobre em escola tão boa quanto a dos ricos; que toda casa tenha saneamento; o real permaneça estável; nossas florestas e rios, protegidos; a população com acesso a serviços públicos de qualidade, produzidos com eficiência; o Estado, comprometido com interesses do público, sem proteger mordomias, privilégios, ineficiência ou corrupção.

É preciso barrar qualquer golpe à democracia; para isso, é necessário convencer o povo a defendê-la. Mostrar que os democratas estão unidos, reconhecendo seus erros, propondo-se a moralizar o serviço público e reformar o Brasil para sintonizá-lo com a realidade do mundo em transformação em que vivemos. Tudo que não fizemos no poder, dando argumentos à direita autoritária para seduzir os militares e a população contra a democracia, como se a falha fosse do sistema democrático, e não da postura de seus líderes.

*Professor emérito da UnB e autor do livro Por que falhamos: o Brasil de 1992 a 2018