Opinião

Artigo: Nós por nós: o autocuidado de mulheres negras é um ato político

Ainda que estejamos em maior número nos subempregos, recebendo salários menores, também estamos em espaços de poder que Maria Pita, minha bisavó materna, não imaginaria que estivéssemos


Por Uila Gabriela Cardoso 

Peguei-me pensando, outro dia, sobre a fala da médica Sydney Labat, da Universidade de Tulane, que afirma: “Nós somos os sonhos mais ferozes dos nossos antepassados”. Ainda que estejamos em maior número nos subempregos, recebendo salários menores, também estamos em espaços de poder que Maria Pita, minha bisavó materna, não imaginaria que estivéssemos.

A nossa história moldou subjetividades e, por mais que cada uma lide com o racismo e com o machismo da maneira que dá conta, desconsiderar fatores sociais ao pensar a saúde mental de mulheres negras é, no mínimo, leviano. Foi o que eu pensei quando ainda estava na graduação de psicologia e não via uma compreensão honesta sobre as pessoas que mais utilizam o serviço de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), nem mesmo do ponto de vista acadêmico — posto que pesquisas sobre o quesito raça/cor nos Centros de Atendimentos Psicossociais (CAPS) encontram como obstáculo a subnotificação.

Com esse incômodo, busquei de forma independente, por intermédio de uma rede de psicólogos negros, e em outras áreas do conhecimento, estudar as relações raciais e os impactos do racismo na subjetividade das pessoas. Para mim, era óbvio que o corpo é também demarcado pela raça, ainda que a psicanálise moderna não se aprofunde nas dimensões psíquicas dessa demarcação. Encontrei algumas respostas no legado deixado por Frantz Fannon, Virgínia Bicudo, Neusa Santos, Maria Aparecida Silva Bento, Isildinha Batista e tantos outros que iniciaram essa discussão na academia e não estão nas ementas da graduação. 

Daí também a opção pela clínica psicológica como atuação profissional, uma vez que durante a formação de psicóloga e analista a percepção das nuances do que era ser uma mulher negra foi parte fundamental do meu processo profissional e pessoal. Acolher e ouvir de forma ativa e qualificada pessoas em sofrimento psíquico sempre foi minha principal área de interesse.

 Ao constatar que as pessoas negras eram, em muitos momentos, silenciadas, invisibilizadas ou questionadas, ao falar sobre suas experiências de racismo nos consultórios e também não estavam representadas nos grandes teóricos da psicologia clínica — como aponta a tese da psicóloga dra. Marizete Gouveia (2018) — vi que era urgente pensar e fazer uma clínica onde falar sobre raça fosse possível.

À medida que a clínica foi se construindo, a chegada de mulheres negras em busca de apoio psicológico foi crescente. Ao me ver nesse fazer-existir clínico diante da transferência visceral e primitiva que é a identificação, vi acontecer algo revolucionário e poderoso, que é a busca pela cura. Cuidar da saúde mental de mulheres negras é um ato político. 

Afinal de contas, quem chora a morte do filho, do companheiro, do irmão ou de algum familiar quando este é vítima do genocídio? Quem ocupa os lugares de cuidado das famílias burguesas? Quem sustenta (não só financeiramente, mas também) os lares da maior parte da população brasileira? Quem é maioria nos dados sobre feminicídio e violência doméstica? As trajetórias de dor estão estampadas nas estatísticas, mas e o cuidado? Onde está? Esse movimento de se permitir sofrer e de se dá o direito ao autocuidado é uma conquista. E, como diz Jurema Werneck, esses (nossos) passos vêm de longe. 

A importância das redes sociais para disseminar informações sobre racismo e saúde mental também deve ser considerada, uma vez que a vida está permeada e afetada pelo mundo on-line. Muitas personalidades virtuais estão discutindo a importância desse espaço de autocuidado, e mesmo que os desabafos nas redes sociais não deem conta da elaboração necessária para se lidar com a dor, pode ser uma forma de se questionar qual o momento de buscar ajuda. 

Pensar em opções outras, diferentes das que nos foram impostas, resgatar a possibilidade de sonhar e o desejo como fatores importantes para a subjetividade e constituição individual (e por que não coletiva?) de um povo que teve a sua memória roubada pelo maior crime da humanidade pode ser libertador. Transformar experiências que foram demarcadas pelo imperativo da sobrevivência e dar lugar ao desejo e ao direito de viver e existir é necessário. Uma das facetas do racismo, talvez uma das mais cruéis, é a desumanização dos corpos negros.

Com uma história marcada pela luta, ter espaço para cuidar das feridas (não apenas as sociais) é se reconectar com o que nos obrigaram a esquecer, que somos indivíduos e, por isso, podemos amar e ser amados, no sentido mais amplo e profundo da palavra.

Daí, você pode se perguntar se eu só atendo pessoas negras. Respondo: não, mas faço questão de deixar evidente que a escuta a pessoas negras deve considerar os aspectos raciais por trás das falas de dor e sofrimento, dando o mesmo direito que pessoas brancas têm de se sentirem completamente acolhidas e ouvidas nos seus espaços terapêuticos. Esse feito não é, ou não deveria ser, incomum. Esse direito é assegurado pelo Conselho Federal de Psicologia a partir da Resolução nº 18/2002. Isso não exclui o direito de pessoas brancas acessarem o atendimento.

Retomo a memória de Maria Pita, e as mais velhas que me antecederam, para compartilhar um ensinamento antigo: “Quem não sabe de onde veio se perde pelo caminho”. Acredito que parte da cura é lembrar de onde viemos e se reconectar com o que a ancestralidade nos ensina. E a minha me ensinou que cuidar dos nossos é missão e compromisso.

Uila Gabriela Cardoso é preta-mulher, psicóloga e atenta