Por isso, ela adquiriu precocemente uma universalidade, expandindo-se por diversos campos do conhecimento e na direção de outros meios culturais.
No Brasil, a psicanálise aportou pelas mãos de Juliano Moreira, fundador da moderna psiquiatria brasileira em meados de 1912. Hoje a psicanálise entre nós está voltada também para o estudo das questões raciais, no que se nota carência de material de pesquisas e análise. A propósito, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae faz uma reflexão do que nos trouxe ao Brasil de hoje. Afinal, em que contexto estamos imersos e quais questões nos atravessam? Como explicar a cruel tendência de invisibilizar e subjugar, por meio do ideal da brancura, o não branco? Como tratar a questão do racismo no Brasil, que perdura e se agarra a um passado escravagista que recobre nosso tecido social, resistindo aos humores do tempo?
Só há pouco tempo, a psicanálise passou a tomar as questões históricas e sociais como objetos de estudo. Por isso, ainda temos poucos trabalhos sobre o tema do racismo, e ainda assim, muito pontuais, uma vez que o racismo de cada lugar do mundo é um racismo. Recentemente, li o livro Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A autora é uma mulher nigeriana que vai estudar nos Estados Unidos e acaba construindo uma carreira por lá. Para ela, a questão racial não existia. Não havia essa coisa de divisão de raças, pois na Nigéria todo mundo é negro. Então, ela chega a um país onde o racismo tem raízes antigas, mas permanece velado. As pessoas diziam que ela era bonita de um “jeito diferente”, ou usavam adjetivos exagerados para referir-se às pessoas negras, por exemplo, em vez de dizerem que uma mulher negra havia chegado, diziam que uma mulher maravilhosa acabara de chegar, na tentativa, bem-intencionada (mas não tanto) de fazer desaparecer a cor da pele, de fazer desaparecer a diferença de estar no mundo, num corpo de pele branca e num corpo de pele negra.
O que a psicanálise faz e pode fazer quanto a esse problema? Não é possível que a gente deixe essas questões para trás, muito menos num país como o Brasil. Se o racismo é um sintoma social, como a gente faz quando ele manifesta-se nos consultórios, por intermédio dos discursos dos analisados? A gente escuta, pinçando naquele discurso o que há de singular, separando cada significante das identificações e expectativas sociais, para implicar o sujeito em suas palavras e decisões. Isso não quer dizer que seja possível separar o sujeito de seu contexto social e da história do mundo. É preciso tentar ouvir o que está além dos ruídos sociais.
O que a pessoa negra diz do racismo é mais importante para a psicanálise do que qualquer outro discurso. E na posição de analistas cidadãos, a escuta deve permanecer, pois é muito significativa. Entendo que o preconceito, a segregação e racismo criam efeitos psicológicos, muitas vezes irreversíveis na população negra. A baixa estima por parte da população negra é percebida somente no silêncio das paredes do consultório. Há pouco tempo no Brasil, não se falava em quase nada sobre o tema. E os poucos negros nos consultórios ajudaram a acender a luz no painel de dificuldade, em que a psicanálise buscou compreender e enfrentar com atenção em cada caso. Como jornalista e psicanalista negro, vejo que a tríade preconceito, segregação e racismo sempre esteve na minha vida, logo não foi difícil pensar no tema por uma porta mais larga propiciada pela psicanálise.
O racismo causa dor psíquica, portanto, quando o negro vai ao consultório do psicanalista negro, se sente reconhecido e tratado como igual, pois se vê mais à vontade no espelho do profissional. Fora da órbita negra, o assunto é geralmente observado como “mania de perseguição ou vitimização”. Para tratamento eficaz, consideramos o relato minucioso do sujeito. Sua infância, família, local onde mora, estuda, trabalha, sua vida social.
O velho e surrado discurso de que no Brasil não existe problema racial ou de que temos aqui uma democracia racial é fator que produz baixa autoestima do povo negro. O sujeito negro se pergunta: “Se não existe, por que tanta dificuldade de emprego, estudo, tratamento respeitoso em locais públicos e privados? Por que sempre o olhar da desconfiança que sofro? Em que país eu vivo?”
Ora, escutar a história deste cliente é plataforma básica para enfrentar o desconforto sofrido, e buscar solução. Portanto, partimos do princípio de olhar a questão pelo viés do psíquico. Então, temos que sintonizar a pessoa com a realidade. Há no Brasil tecido social doente, logo, precisamos desconstruir estereótipos. A subconsciência do enfoque leva à consciência plena. Sozinhas, as pessoas têm dificuldades de sair do cipoal dolorido em que se encontram. Daí porque é imprescindível problematizar.
*Jornalista e psicanalista
Ora, escutar a história deste cliente é plataforma básica para enfrentar o desconforto sofrido, e buscar solução. Portanto, partimos do princípio de olhar a questão pelo viés do psíquico. Então, temos que sintonizar a pessoa com a realidade. Há no Brasil tecido social doente, logo, precisamos desconstruir estereótipos. A subconsciência do enfoque leva à consciência plena. Sozinhas, as pessoas têm dificuldades de sair do cipoal dolorido em que se encontram. Daí porque é imprescindível problematizar.
*Jornalista e psicanalista