A psicanálise, como sabemos, nasceu em Viena em fins do século 19, a partir de um método absolutamente original de exploração da subjetividade humana. Sua criação é atribuída a Sigmund Freud, como um método terapêutico de tratamento das neuroses. Embora tenha surgido em um ambiente sociocultural específico, desde seu começo, causou grande impacto devido à ousadia em tentar compreender os mistérios da alma humana, por meio de um método de investigação que essencialmente busca recriar seus conflitos básicos no interior de uma relação íntima continuada com o psicanalista. Por isso, ela adquiriu precocemente uma universalidade, expandindo-se por diversos campos do conhecimento e na direção de outros meios culturais.
No Brasil, a psicanálise aportou pelas mãos de Juliano Moreira, fundador da moderna psiquiatria brasileira em meados de 1912. Hoje a psicanálise entre nós está voltada também para o estudo das questões raciais, no que se nota carência de material de pesquisas e análise. A propósito, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae faz uma reflexão do que nos trouxe ao Brasil de hoje. Afinal, em que contexto estamos imersos e quais questões nos atravessam? Como explicar a cruel tendência de invisibilizar e subjugar, por meio do ideal da brancura, o não branco? Como tratar a questão do racismo no Brasil, que perdura e se agarra a um passado escravagista que recobre nosso tecido social, resistindo aos humores do tempo?
Só há pouco tempo, a psicanálise passou a tomar as questões históricas e sociais como objetos de estudo. Por isso, ainda temos poucos trabalhos sobre o tema do racismo, e ainda assim, muito pontuais, uma vez que o racismo de cada lugar do mundo é um racismo. Recentemente, li o livro Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A autora é uma mulher nigeriana que vai estudar nos Estados Unidos e acaba construindo uma carreira por lá. Para ela, a questão racial não existia. Não havia essa coisa de divisão de raças, pois na Nigéria todo mundo é negro. Então, ela chega a um país onde o racismo tem raízes antigas, mas permanece velado. As pessoas diziam que ela era bonita de um “jeito diferente”, ou usavam adjetivos exagerados para referir-se às pessoas negras, por exemplo, em vez de dizerem que uma mulher negra havia chegado, diziam que uma mulher maravilhosa acabara de chegar, na tentativa, bem-intencionada (mas não tanto) de fazer desaparecer a cor da pele, de fazer desaparecer a diferença de estar no mundo, num corpo de pele branca e num corpo de pele negra.
O que a psicanálise faz e pode fazer quanto a esse problema? Não é possível que a gente deixe essas questões para trás, muito menos num país como o Brasil. Se o racismo é um sintoma social, como a gente faz quando ele manifesta-se nos consultórios, por intermédio dos discursos dos analisados? A gente escuta, pinçando naquele discurso o que há de singular, separando cada significante das identificações e expectativas sociais, para implicar o sujeito em suas palavras e decisões. Isso não quer dizer que seja possível separar o sujeito de seu contexto social e da história do mundo. É preciso tentar ouvir o que está além dos ruídos sociais.
O que a pessoa negra diz do racismo é mais importante para a psicanálise do que qualquer outro discurso. E na posição de analistas cidadãos, a escuta deve permanecer, pois é muito significativa. Entendo que o preconceito, a segregação e racismo criam efeitos psicológicos, muitas vezes irreversíveis na população negra. A baixa estima por parte da população negra é percebida somente no silêncio das paredes do consultório. Há pouco tempo no Brasil, não se falava em quase nada sobre o tema. E os poucos negros nos consultórios ajudaram a acender a luz no painel de dificuldade, em que a psicanálise buscou compreender e enfrentar com atenção em cada caso. Como jornalista e psicanalista negro, vejo que a tríade preconceito, segregação e racismo sempre esteve na minha vida, logo não foi difícil pensar no tema por uma porta mais larga propiciada pela psicanálise.
O racismo causa dor psíquica, portanto, quando o negro vai ao consultório do psicanalista negro, se sente reconhecido e tratado como igual, pois se vê mais à vontade no espelho do profissional. Fora da órbita negra, o assunto é geralmente observado como “mania de perseguição ou vitimização”. Para tratamento eficaz, consideramos o relato minucioso do sujeito. Sua infância, família, local onde mora, estuda, trabalha, sua vida social.
O velho e surrado discurso de que no Brasil não existe problema racial ou de que temos aqui uma democracia racial é fator que produz baixa autoestima do povo negro. O sujeito negro se pergunta: “Se não existe, por que tanta dificuldade de emprego, estudo, tratamento respeitoso em locais públicos e privados? Por que sempre o olhar da desconfiança que sofro? Em que país eu vivo?”
Ora, escutar a história deste cliente é plataforma básica para enfrentar o desconforto sofrido, e buscar solução. Portanto, partimos do princípio de olhar a questão pelo viés do psíquico. Então, temos que sintonizar a pessoa com a realidade. Há no Brasil tecido social doente, logo, precisamos desconstruir estereótipos. A subconsciência do enfoque leva à consciência plena. Sozinhas, as pessoas têm dificuldades de sair do cipoal dolorido em que se encontram. Daí porque é imprescindível problematizar.