Em crônica de tirar o fôlego sobre Brasília, Clarice Lispector escreveu assim: “... Se tirassem meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia, só sairia a paisagem...”. Em todo o seu magnífico relato sobre a capital recém-saída (não completamente, claro) do papel, o que mais aparece – ou melhor, transparece – é o espanto. Adoro isso, porque ainda hoje esta é a palavra que melhor define as reações de quem chega a esta cidade.
De certo modo, todos nós, forasteiros no bom sentido, quando chegamos, fomos só paisagem. Fomos a argila do molde que ia tomando forma conforme tudo em volta crescia e aparecia. Olhe as fotos antigas. Provavelmente, é você na imensidão. Como um traço de centímetro na régua, como uma estrela num céu gigante, como um ponto na linha do horizonte. Esplanada, Eixão, o lago Paranoá refletindo luz... e você ali... pequena, distante, parte do retrato. Cadê sua foto? Seu sorriso banguela na murada do aeroporto esperando o avião chegar; seu registro jogando pipoca para os cisnes nos espelhos d’água; olha você escorregando com papelão no gramado do Congresso ou correndo debaixo dos blocos do Plano Piloto. Sim, você foi e é paisagem. Guarda aí, separadinha, sua foto, para nos mandar daqui a pouco.
Quando se deu o espanto visual de Clarice, ela também disse: “Brasília ainda não tem o homem de Brasília”. Sim, não havia. Hoje, há. Aos montes. Somos todos nós. Escrevemos, todos nós, cotidianamente, a história desta cidade. Que ainda causa espanto e surpresa. Que ganhou esquinas, contornos, linhas, poesias, canções. Brasília ganhou sua humanidade. Erros, defeitos, acertos, consertos. Há remendo por toda parte; morte e vida por todo canto. Exatamente como um ser humano em construção. E, olha Clarice, já faz tempo há lugar para ratos. E os urubus, você estava certa, sobrevoam...
Quando vejo os poderosos levantando a perigosa bandeira-slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, acho verdadeira graça. Aquele tipo de piada pronta e pouco honesta de quem aqui pisou para olhar não com o espanto de Clarice ou com o meu, mas com o deslumbre fácil de quem observa a Esplanada, mas sequer percebe o horizonte. Vê apenas a Brasília do lobby, da política, da máquina pública inchada. Aquela vontade de dizer: “Ei, você, desce daí... Do alto de tanta arrogância, não dá para ver a melhor parte. A banda tá passando lá longe, tá perdendo o bonde, meu caro”.
Observar Brasília desse lugar-comum, sempre de cima para baixo, é não merecê-la. Chegam aos montes com ego inflado e prepotência absurda a ponto de achar que Brasília é menos Brasil. Naquela época Clarice previu: “Se não for povoada (Brasília), ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la”.
Brasília está superpovoada. E, sim, outra coisa a habita: os parasitas. Mas eles não devoram as vísceras só de Brasília; eles se alimentam de Brasil, consumindo suas entranhas e regurgitando o que sobra para o povo. Portanto, meus amigos, Brasília é Brasil desde o traçado – em toda sua dimensão, beleza e podridão.
Cabe a nós, brasilienses, ensinar aos ridículos esnobes que adoram reduzir a cidade à sua dimensão política que talvez esta capital seja mais Brasil que qualquer outra. Nós, que somos os verdadeiros biógrafos da capital, vamos escrever essa história. O Correio Braziliense já começou e seguirá fazendo. Vamos abrir canais para sua foto, seu relato, sua história. Separa, guarda, observa, faz carinho nessa memória. E, em breve, compartilha com a gente.