Jair Bolsonaro recebeu 57 milhões de votos e se elegeu presidente da República. Alguns dizem que não interessa se esses foram votos anti-PT e somados ao pró-Jair e PSL, mas sim o total final. Penso ao contrário, que interessa sim. Mas, na verdade, não há como saber as motivações do eleitor. E ele está no comando do país, designando quem quiser para os cargos do executivo e baixando normas que podem ou não serem barradas no congresso e na justiça. Está se tornando um costume separar o ideário econômico do governo de seu projeto de reforma social nos costumes, na educação, na cultura e no meio ambiente, como se um não tivesse nada a ter com o outro. Pode-se pensar que essa é uma vitória do setor de comunicação social e propaganda do governo: convencer a população e a mídia de que o governo Bolsonaro é avançado e progressista na economia e conservador nos costumes.
Situação similar ocorreu na corrida presidencial, em que a população foi convencida de que só havia duas alternativas de poder: ou o PT, com a “volta” da corrupção (como se só o PT roubasse), ou Jair Messias Bolsonaro, o representante do antissistema e do atendimento das aspirações confusas das manifestações de 2013. Ao dividir-se as opções em apenas duas, cria-se na mente das pessoas uma situação mais favorável de solução das angústias. É simples. É muito mais econômico, do ponto de vista psíquico, trabalhar com apenas duas hipóteses do que com três, cinco ou mil. Portanto, votou-se ou PT ou JB por ser menos angustiante e, na mesma toada, economia é uma coisa e costumes (ou o resto), outra. O bolso é o que importa, comida na mesa é o que interessa, o sucesso na economia supera os problemas com o “resto”.
Porém não é bem assim. As duas vertentes estão ligadas pelo mesmo presidente e pelas mesmas ideias. Paulo Guedes prometeu, antes das eleições (e depois, ainda em 2018), zerar o deficit e crescimento superior a 2,5% no primeiro ano de Bolsonaro. Para tanto, foi vendida e comprada a ideia de que a reforma da Previdência e a nova legislação trabalhista resolveriam a crise econômica e acabariam com o desemprego. Ambas retiraram direitos dos trabalhadores e da população e não resolveram coisa alguma (exatamente como fizeram governos anteriores). Mas incluem restrições de acesso a tribunais e a agências governamentais, como atualmente se evidencia no INSS. Proposições cruéis como taxar seguro-desemprego foram colocadas como atitudes naturais de quem governa com racionalidade (ideias antigas sempre nas mesas de todos governantes que foram extraindo pelas bordas os programas de benefícios aos trabalhadores).
As medidas legais, mas talvez não legítimas, de alterar legislações e composições de comissões de direitos humanos e também de participação social seguem o mesmo caminho de restringir o acesso das comunidades para influenciar as políticas de governo. Os ataques sistemáticos à imprensa, à educação — tanto às instituições quantos aos professores e aos conceitos, à preservação do meio ambiente e à cultura — revelam muito mais que uma atitude isolada e solitária do presidente, mas um preceito de governo, que, aliás, Jair Bolsonaro nunca escondeu.
Como escreveu Jânio de Freitas, “o ataque constante ao sistema constitucional de Três Poderes independentes, a intromissão ideológica na política interna de países vizinhos, as contradições da política externa, além daquelas violentas práticas administrativas, são realidades objetivas”.
Pode-se acusar JB de várias coisas, mas não de mentir. Assim como Hitler, descreveu em Mein Kampf (que além dos escritos de Olavo de Carvalho deve ser o livro de cabeceira de algumas autoridades), o que seria um governo nacional-socialista, por toda sua trajetória Bolsonaro disse quais eram suas concepções e o que faria se chegasse ao poder. É isso que está cumprindo.
O que surpreende é o comportamento do Congresso que, em muitas ocasiões, se recusa a participar desse assalto às liberdades. O papel do Judiciário, ainda que mais oscilante, também tem contribuído para manter a chama democrática. O que assusta é o comportamento de parte da população que defende toda e qualquer medida do presidente e de seus ministros. Não vou me deter nos conteúdos das redes sociais, que “filtram”, segundo as concepções de seus integrantes, mas nos comentários expressos nos sites de notícias, como UOL, G1, e nas cartas de leitores de jornais e revistas. Um dos mais frequentes é o que reclama de críticas ao governo ou a seus membros, geralmente finalizando com “deixa o presidente governar”, como se a crítica fosse impeditiva ao gerenciamento da coisa pública, e as pessoas tivessem o poder de, ao falar, atrapalharem a governabilidade.
Outros tipos de comentários, também frequentes, dizem respeito à notícia sobre o desaparecimento de uma pessoa após a abordagem por forças policiais: “Alguma coisa ele fez” , “com esse cordão de ouro no pescoço ...”, “ela se comportou como suspeita”, e por aí vai. Resta, ainda, dizer que as fotos dos abordados revelam que a imensa maioria é negra e pobre. Porém os mais comuns são aqueles que, à falta de qualquer outro argumento, afirmam que o Brasil foi salvo do comunismo, que quem critica é de esquerda ou quer a volta do PT, que o Lula é ladrão e similares. Ou seja, o assunto é desviado e não se aplica ou se explica.
Voltando ao início desse artigo, não se sabe quantos votaram em Jair Bolsonaro por ele mesmo e por suas ideias, mas é preocupante constatar que uma parcela da população brasileira comunga com concepções retrógradas, racistas e restritivas às liberdades individuais, intelectuais e de criação, e mesmo com as informações e avisos sobre os malefícios do caminho traçado pelo governo Bolsonaro se mantêm imunes aos apelos da realidade e continuam apoiando-o incondicionalmente. A mágica só existe como mágica enquanto não se sabe como é feita. Depois de desvendada, vira truque.