Em Os brutos também amam, diz-se que o diretor George Stevens utilizou a técnica de filmar com a câmera na altura dos olhos de um menino de 10 anos e, com isso, nos deu a inquietante perspectiva de assistir à história, ver e entender seus personagens e cenários com a visão e a simplicidade de uma criança. Não sei o mistério da técnica usada por Fernando Meirelles, mas ele nos fez assistir a dois homens de físico mediano como se fossem gigantes, maiores do que os palácios onde conversam, na deslumbrante e monumental paisagem do Vaticano. Gigantes e do mesmo tamanho, independentemente da simpatia que o espectador tenha por um ou por outro.
Sabemos, entretanto, que ele fez grandes personagens pelo diálogo, postura e valor moral de cada um deles. A genialidade do diretor está em dar veracidade a uma obra que ele cataloga como ficção para representar uma determinada realidade. É isso que faz um grande escritor, pintor ou um cineasta como Meirelles. Nas suas mãos, a ficção vira um filme realista e belo. Os diálogos passam veracidade, porque são produto da matéria-prima dentro de cada personagem, misturando moral e lucidez, ética e inteligência, seus sonhos, angústias, frustrações.
Do primeiro ao último encontro entre Bento XVI e Francisco I, este ainda cardeal Bergoglio, percebe-se duas mentes brilhantes e diferentes, como em uma luta de esgrima no palco da história que espera ansiosa pelo resultado e as consequências do argumento que sairá vitorioso. Em Shane, vemos com olhos de um menino os tiros e murros entre lutadores de um lado ou de outro da história. Em Dois Papas, também nos sentimos crianças diante de dois lutaidores gigantes com argumentos ideológicos, políticos, sociais e teológicos. Além de que eles se enfrentam com mútuo respeito e na busca de um entendimento, não de uma vitória, pelo bem da Igreja neste momento difícil, devido à curva da história e aos erros de alguns de seus líderes. Eles pensam diferentemente, mas têm o mesmo entendimento da tormenta do presente, cada um propondo uma forma alternativa de atravessar as dificuldades de hoje em direção ao amanhã.
Quando escutamos um hino, reunimos o sagrado com nossa vida. O filme Dois Papas nos passa isso. Eles nos representam com nossos credos e nossas visões de mundo. Na cena do tango dançado na despedida entre os dois, ou quando se reencontram para assistir ao jogo da Alemanha contra Argentina, o sublime e o sagrado se reúnem ao mundano e terrestre, formando o humano. O filme os mostra como gigantes e humanos com pecados, dúvidas, erros, remorsos.
Dois Papas, como os hinos, nos deixa com desejo de querer mais tempo de filme e de querer mais líderes como eles: que dialoguem entre si, exatamente por discordarem, por entenderem diferentemente o presente e sonharem diferentemente o futuro; e que sejam capazes de mea-culpa e autocrítica como eles fazem de seus passados.
Um dos momentos mais dramáticos do filme e mais geniais do hino é a cena em que Bento XVI se confessa ao padre Bergoglio sem que o som de sua voz seja escutado. Sabemos que ele está expiando o pecado de assistir aos erros na Igreja, e sua omissão em alguns momentos desses erros. Os flashbacks na vida de Bergoglio mostram o quase desespero de possíveis equívocos durante o regime militar argentino, mesmo com boa intenção.
Pena que nossos políticos não fazem essa expiação pelos pecados da corrupção nas prioridades e no comportamento, a pedofobia de negar escola, saúde, alegria a nossas crianças. Ainda não fizemos nossas autocríticas, confissões nem aceitamos o diálogo com quem divergimos: não temos gigantes na política brasileira dessas últimas décadas. E sem eles nenhum cineasta gigante consegue fazer o nosso filme hino da política.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)