O Brasil, no auge da crise social e do desencanto com práticas e instituições, encontrou uma maneira assustadora de se arranjar. Isso não é novo. Discorrendo sobre o terrorismo de Estado no ambiente conflagrado após a queda da Bastilha, Victor Hugo pontuou: “As catástrofes têm uma sombria maneira de arranjar as coisas”.
Num cenário desolador, líderes superficiais e oportunistas conseguiram vender, no encerramento da segunda década deste século, o discurso de que tudo estava errado. O renascimento de ideias sepultadas por sociedades civilizadas, ao invés de reparar o pavimento e corrigir o rumo, nos fez engatar marcha a ré. O terraplanismo talvez seja só esquisitice quando comparado ao discurso que facilita o acesso às armas, ao desmatamento ou à negação do aquecimento e dos danos dos agrotóxicos.
O estímulo a ações predatórias ao meio ambiente, aos direitos humanos e à proteção do trabalho; a tacanha visão da educação e da democracia; e a esperteza do mito da meritocracia, por vezes com o inadvertido apoio de vítimas, confirmam o medo dos pessimistas. A perspicácia de Victor Hugo ajuda a explicar o arrebatamento provocado por ideias anacrônicas: “A esperança seria a maior das forças humanas se não existisse o desespero”.
No plano pessoal, a virada do calendário gregoriano impõe a prestação de contas e a revisão de planos, num balanço marcado por sentimentos de medo, angústia, ansiedade, mas também de esperança e de fé. A marca lembra, e cobra, por mais um período esgotado na contagem regressiva para a realização dos propósitos da existência. Sofre-se com a cruel melodia: “Então é Natal, e o que você fez?”
Na dimensão social, a FGV registrou o agravamento da desigualdade que, no segundo semestre de 2019, superou o pico histórico. O IBGE informa que também se agravou o indicador de pobreza nos últimos 4 anos, fazendo saltar de 4,5% para 6,5% a parcela da população que vive em situação de penúria extrema.
A vida frenética e insegura — Tempos líquidos, na figura de Zygmunt Bauman —, repercutindo a crueza das estatísticas do desemprego e da banalização da violência, corrói as condições de convivência em espaços e arranjos sociais arquitetados para proteger o cidadão. A exclusão e a luta pela sobrevivência minam a solidariedade entre seres humanos desafiados em seus temores essenciais.
Alheio a isso, segue espantosamente favorável o balanço do setor financeiro. O ganho anual superior a R$ 60 bilhões contrasta com o estado geral da economia, amplia a desigualdade e aprofunda a perversa distribuição da renda do trabalho. O Ipea informa que em 2019 o segmento de ganhos mais baixos sofreu a maior queda na renda domiciliar.
Os dados do desemprego são dourados pelo malabarismo de analistas que saúdam os subempregados e “empreendedores da economia de aplicativos”, na dita nova forma de organização do trabalho. O alento (a boa nova!) é que a denúncia dos riscos dessa situação mostra força crescente. O economista francês Thomas Piketty conquista espaço ao demonstrar que a desigualdade é escolha política, ideologicamente justificada, não o resultado inevitável de processos humanos ou da natureza.
O papa Francisco, por sua vez, instiga ao atualizar o discurso da Igreja do final do século 19 sobres os riscos da fome para a democracia; da pobreza para o desenvolvimento; e da desigualdade para a justiça.
Em espaço insuspeito, no que diz respeito à fraqueza pela compaixão ou à contaminação do “comunismo”, o FMI e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm emitido sinal semelhante. Alertam para as evidências de que a desigualdade, além de prejudicar o crescimento, representa risco para a democracia, pressionando e ameaçando o modelo que pretendem perpetuar.
A crença de que podemos ganhar um ano novo vem da constatação de que, embora não seja fácil, há sinais de consciência e de um movimento esperançoso, pois, como poetizou Drummond: “Para ganhar um ano novo / que mereça esse nome, / você, meu caro, tem de merecê-lo, / tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, / mas tente, experimente, consciente”.
Como o copo terminou o ciclo? Meio cheio ou meio vazio? A esperança e a fé têm algo em comum, o otimismo. O otimismo esperançoso funda-se na crença de que o fundo do poço pode ser um ponto de apoio, mas o impulso, para a mudança pessoal ou social, depende da ação que está a desafiar a incômoda provocação melódica “e o que você fez?”
A fé na construção do porvir, mesmo num horizonte sombrio, resulta da convicção expressada por Victor Hugo de que “Por trás da nuvem que nos dá sombra, há a estrela que nos dá luz”.
*Procuradores do Trabalho
*Procuradores do Trabalho