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Há responsabilidade do Estado pela persistência das altas taxas de mortalidade materna no Brasil, mesmo após mais de 15 anos da instituição do Pacto Nacional de Redução da Mortalidade Materna e Neonatal (PNRMMN). Está em vigência uma política de saúde reprodutiva que, sistematicamente, viola direitos humanos de mulheres e crianças negras ao negligenciar a perspectiva racial transversal na agenda, formulação e execução.
Em especial, destacamos deste cenário a violência obstétrica, que se caracteriza pela violação de direitos da mulher nos serviços de saúde durante o pré-natal, parto, puerpério ou situações de abortamento e está diretamente relacionada com os índices de morte materna.
Em 2001, o relatório final de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) criada para tratar do tema concluiu que a maioria das mortes maternas poderia ser evitada com assistência obstétrica adequada. Quanto ao perfil das vítimas, o relatório afirma que a grande maioria era mulheres de baixa renda, pouca escolaridade, sem ocupação formal e sem acesso à saúde.
A mortalidade atingia as mulheres muito jovens (gravidez na adolescência) ou acima dos 35 anos, ainda de acordo com o relatório da CPI, e, no quesito raça/cor, foram encontradas dificuldades na coleta de dados de mortalidade desagregados por raça. Entretanto, considerando a classificação atual que enquadra pretas e pardas na população negra, podemos considerar que, no quesito raça, a maioria das vítimas seriam negras. Elas reivindicam direitos reprodutivos com atenção para suas especificidades desde a década de 80.
Com base no relatório, o Brasil lançou o PNRMMN e fixou o objetivo de reduzir em 15% o número de mortes de mães e recém-nascidos até 2007 e em 75% até 2015, focando num esforço multinível e intersetorial dos governos federal, estadual, municipal e sociedade civil.
A mortalidade materna foi um dos piores indicadores que o país apresentou quando prestou contas às Nações Unidas em 2015. É urgente a análise das razões pelas quais as estratégias adotadas e os avanços identificados no campo normativo, formativo e tecnológico não foram suficientes para impactar nas estatísticas.
Informações existentes até 2016 demonstram que continuam morrendo mais mulheres negras de baixa renda, pouca escolaridade, sem ocupação formal e sem acesso à saúde, de acordo com dados trazidos na campanha ;SUS sem racismo;, do Ministério da Saúde.
Esse é o ponto: o perfil das vítimas demonstra que não se pode falar sobre mortalidade materna sem entender como o racismo institucional e ambiental tornam as estatísticas alarmantes. Como parte das opressões que promovem a injustiça reprodutiva no país, o racismo precisa ser entendido, reconhecido e nomeado.
Fernanda Lopes, quando representante auxiliar do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) no Brasil, afirmou que ;a condição de saúde é determinada por fatores econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais;. Variáveis e determinantes que formam matrizes de opressão que se cruzam e entrelaçam, como num prisma, de forma que a população negra experimenta maior risco de morbidade e mortalidade.
Por essas razões, a reflexão que faço sobre o Pacto é pela perspectiva de todas as que foram excluídas e seguem morrendo por obra da negligência e do descaso cuja origem está na subalternização da raça, como alertado por Sueli Carneiro.
Ao racializar a formulação de Foucault sobre biopoder ; o poder que funciona mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer ; Achile Mbembe nos provoca ao afirmar que o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, esse velho direito soberano de matar;.
Um Estado que tem o poder de evitar mortes maternas, mas escolhe deixar morrer, sabendo quem são as vítimas, demonstra que seu ;projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações; (Mbembe, Necropolitica?, 2018).
A coletânea de saúde da população negra organizada por Jurema Werneck traz afirmação de Adauto Martins Soares Filho de que ;a identificação das diferenças permite distinguir as necessidades concretas dos beneficiários, orientando a formulação de políticas públicas mais sensíveis às suas particularidades, de saúde ou segurança, enfocando a equidade ; entendida como a superação das diferenças injustas e evitáveis ; no acesso aos serviços e inclusão dos grupos mais vulneráveis nos processos de participação, particularmente no de prevenção;.
Assim, identificamos a necropolítica: o uso do poder e da política para condicionar a existência humana, elegendo quem pode viver e quem deve morrer. Enquanto as diferenças não forem o ponto de partida da construção da igualdade material, corpos negros continuarão tombando pelo poder letal do Estado: do fuzil para juventude periférica e da negligência nos serviços de saúde para as mulheres.