Começo este texto reiterando perguntas angustiantes que já fiz aqui: quantas crianças terão de ser torturadas, quantas terão de morrer para que o poder público cumpra seu dever%u2014 repito, dever %u2014 de investir em políticas de proteção a meninos e meninas? Quando haverá um combate efetivo às atrocidades contra a camada mais indefesa da população? As barbáries se sucedem, dia após dia, e o Estado segue inerte. Simplemente ignora sua obrigação de garantir, com absoluta prioridade, o bem-estar e a segurança de crianças, adolescentes e jovens, como determina a Constituição, em seu artigo 227. Em vez da %u201Cabsoluta prioridade%u201D, definida na lei maior deste país, prevalece a omissão. Não há nem mesmo campanhas de conscientização nos moldes do combate ao feminicídio, embora as crianças sejam ainda mais vulneráveis do que as mulheres.
Claro que a luta pelo fim da violência contra meninos e meninas tem de envolver também família e sociedade. Cabe, porém, ao poder público tomar a frente das ações, porque somos um país, por exemplo, com a arraigada cultura de espancar para educar. Quando pais ou responsáveis batem, estão %u201Ccorrigindo%u201D, então, ninguém deve se meter %u201Cna criação alheia%u201D. Esse asqueroso pensamento comum não pode mais ser tolerado. Criança sendo machucada é um problema público, não privado, diz respeito a todos nós. As agressões físicas e psicológicas ocorrem, na imensa maioria das vezes, no ambiente familiar, portanto parentes, vizinhos e professores têm de ser conscientizados sobre a necessidade de denunciar. Se é errado bater em adulto %u2014 passível, inclusive, de processo %u2014, por que é certo agredir criança? Meninos e meninas são cidadãos, sujeitos de direitos, e não propriedades das famílias.
Outra chaga no Brasil é a violência sexual. Somos o país em que quatro meninas de até 13 anos são estupradas a cada hora, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E o que é feito para combater essa calamidade?
O governo tem o poder de fazer da proteção dos mais vulneráveis uma luta nacional, convocar para o esforço coletivo, fortalecer a tão falha rede de atendimento a esse público. É necessário o envolvimento da iniciativa privada, de entidades, da população.
Até no âmbito da Justiça o desamparo é palpável. Acabamos de ver o devastador caso de Micaelly, de apenas 3 anos, espancada até a morte pela mãe e pelo padrasto, em São Paulo. A menina já tinha passado 13 dias internada com uma série de lesões. Na ocasião, a Justiça paulista, diante dos sinais de maus-tratos, passou a guarda dela para a avó materna. Porém, quando Micaelly recebeu alta, a avó a entregou de volta para a mãe. No dia seguinte, a garotinha foi assassinada. Agora, a polícia investiga se houve omissão da avó %u2014 o que tem de ser apurado, de fato, e punido %u2014, mas a Justiça não avaliou o perfil dessa mulher antes de conceder a guarda para ela? E por que não foi determinada nenhuma medida protetiva para a criança?
Não é possível que vamos continuar a ver crueldade atrás de crueldade sem reagirmos. Se não houver, repito, políticas públicas efetivas para proteger crianças e adolescentes, se não ocorrer uma convergência de ações, a violência contra meninos e meninas não cederá. Com o Estado como carro-chefe, precisamos de uma mobilização nacional para proteger os inocentes.