Jornal Correio Braziliense

Opinião

Vozes de Pachamama

Evo Morales foi vítima de seus próprios erros, mas também das artimanhas da elite, sedenta para retornar ao Palacio Quemado e pouco afeita às políticas sociais do primeiro líder indígena da Bolívia. Berço da civilização tiwanaku e local de nascimento do Império Inca, de acordo com a mitologia andina, a Bolívia tem fortes tradições quéchuas e aimarás.

Sua própria história se confundia com a figura de Evo, um líder cocaleiro aimará, que galgou espaço na sociedade até se tornar uma figura política influente. Talvez por isso causasse tanta resistência da direita, alijada do poder por vários anos e obrigada a tragar as políticas socialistas na contramão do neoliberalismo. Em três mandatos, Evo conseguiu alavancar o crescimento da economia e levar esperança à nação ainda marcada pela pobreza.

O primeiro presidente indígena da história da Bolívia e, provavelmente, do mundo errou ao se confundir com o poder. A democracia pressupõe alternância de governos. O monopólio da presidência leva à erosão do Estado de direito e flerta com a ditadura. Evo ignorou a oposição popular a um quarto mandato, expressa por meio de referendo. Ilegítimas ante a vontade do povo, as eleições presidenciais também foram marcadas por fortes suspeitas de fraudes, com a interrupção da apuração por várias horas. Há quem diga que Evo manipulou o sistema para assegurar vitória no primeiro turno contra o ex-presidente centrista Carlos Mesa. Foi convidado pelas Forças Armadas a abandonar o cargo.

A oposição, também ávida por recuperar o tempo perdido, desprezou a Constituição e, mesmo sem quórum na Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolivia, designou a senadora Jeanine Áñez como nova presidente. Os simpatizantes do Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales, se revoltaram contra a decisão, impuseram bloqueios rodoviários e alguns exigiram a renúncia da mandatária interina. Nos violentos confrontos entre os indígenas, que saíram às ruas com pedaços de paus e com a bandeira whipala nas mãos, pelo menos 25 pessoas morreram.

As vozes de Pachamama clamam pela pacificação, tarefa difícil em um país cuja democracia navega ao sabor dos militares e da própria fragilidade. A convocação imediata de eleições e uma anistia geral ao MAS podem ser as opções mais viáveis para restaurar a estabilidade na Bolívia. Qualquer erro ou exagero de Áñez e dos seguidores de Morales pode ter impacto desastroso e levar a Bolívia aos rumos de uma guerra civil.