Casualmente, encontro-me em Barcelona para participar de evento destinado ao intercâmbio de ideias entre magistrados ibero-americanos. O evento teria tudo para ser perfeito, não fosse o fato de ver-me sitiada num quarto de hotel em razão das fortes manifestações de protesto contra a sentença do Tribunal Supremo.
Já estive em Barcelona noutros momentos e pude experimentar, com muita alegria e satisfação, a riqueza cultural e econômica da capital da Catalunha. Tinha pleno conhecimento de que Barcelona era uma das cidades espanholas mais belas, modernas e progressistas, cujo povo se orgulhava de sua cultura e linguagem diferenciadas, sem perder a sintonia e o respeito pela pátria.
Também conheci a história deste povo, cuja parcela da população, por identidade cultural, mantinha uma luta constante pela independência da Espanha. Não raras vezes, vi bandeiras da Espanha e da Catalunha se entrelaçarem para exaltar as diferenças ou para demonstrar os pontos de convergência. E sempre olhei para uma ou outra bandeira e enxergava a mesma vivacidade das cores que elas refletem.
No entanto, ao voltar a Barcelona desta vez não tive a mesma vibração da cidade. No lugar de rostos sorridentes, vi a preocupação estampada em cada face e em cada diálogo. Já não havia o entrelaçar de estandartes rubro-dourados, mas a inquietação e o nervosismo decorrentes do avanço e das consequências que os movimentos de protesto ocasionavam no tecido social.
Já não se discutia ser catalão ou espanhol. Parece-me que a preocupação era com o vertiginoso avanço da violência decorrente de protestos contra a sentença que condenou os líderes separatistas pelo cometimento dos crimes de sedição e malversação de dinheiro público, no evento de 1; de outubro de 2017, em razão dos atos para a realização um referendo declarado ilegal pelo Tribunal Constitucional.
Os jornais locais demonstravam que o movimento ganhou a força de ações organizadas, que recorrem à violência para protestar contra a condenação judicial. E não se tem outra notícia senão a de que as manifestações continuarão enquanto não houver a anistia dos acusados, que se autodeclaram presos políticos.
Sinto muita tristeza em observar que uma sociedade de democracia madura, sob o prisma de um sentimento pós-democrático, destoa de sua história para praticar condutas sociais somente imputadas, em outros tempos, aos denominados países de terceiro mundo. Um sentimento de pesar pelo sofrimento de toda sociedade que, catalã ou espanhola, onde quer que esteja seu coração, assiste estarrecida ao avanço da violência e da criminalidade e traz consigo a disseminação de ruptura e de esfacelamento do tecido social, separando famílias e amigos por uma causa que, não obstante a beleza da origem, desintegrou seus princípios com o tempo.
Não se compreende, repito, numa sociedade de pós-democratizada, a utilização de metodologias rudes de contestar contra ordens judiciais. Isso não é exercício de direitos humanos, mas o extravasamento do ódio, da tristeza e da vergonha de que uma sociedade de belíssima índole seja assacada pela dor e pela tristeza de atos de vandalismo contra o Poder Judiciário, um dos pilares da democracia e equilíbrio dos poderes.
Os verdadeiros catalães, aqueles que valorizam sua arte, sua história, seu folclore, sua comida e sua língua, o catalão de brilho nos olhos e espírito progressista que conheci em 1992, não compartilham desses atos e não toleram que os atos judiciais sejam objeto de pressão. O catalão genuíno tem pleno conhecimento da organização social de sua província e de seu país, sabe que participa do regime democrático, que o conhece e o respeita, participa e não deseja constituir uma sociedade marcada pela barbárie.
Não aceita a ruptura com o regime democrático, do qual o maior expoente são os atos de violência contra os poderes legalmente constituídos. É um povo feliz, que não pretende carregar a preocupação, a tristeza e a responsabilidade pelo esfacelamento do tecido social, cuja parcela da população luta por uma causa, mas sempre respeitou a decisão e o poder das instituições.
Os catalães têm orgulho de suas raízes, de sua história e da diversidade cultural que representa, da pluralidade e riqueza da nação espanhola. Os catalães têm consciência do significado e das consequências de um ato de emancipação e estão preparados para discutir ideias e adotarem pacificamente qualquer posição, pois trazem consigo o sorriso e a leveza de um povo consciente e feliz.