Jornal Correio Braziliense

Opinião

ARTIGO





Ferramenta de vigilância?

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro assinou os decretos n; 10.046 e n; 10.047, que criam o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Parece o fim do calvário de juntar documentos sempre que o cidadão precisa de um serviço público. Só que não, ou não apenas.

O governo pretende reunir todas as informações dos brasileiros em uma base de dados: informações biográficas, laborais e o que chama de dados temáticos, que são características biológicas e comportamentais captadas para reconhecimento automatizado, como palmas das mãos, digitais, retina, íris, rosto, voz e até maneira de andar.

Esses dados serão compartilhados entre agências de governo. Mas a ideia não é essa? Sim. O problema é que os decretos contrariam a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), n; 13.709, aprovada em agosto de 2018, e que entrará em vigor a partir de agosto de 2020.

Essa lei, que foi amplamente discutida com a sociedade, dispõe sobre o tratamento de dados pessoais para proteger direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, e estabelece regras para que o cidadão tenha mais controle sobre o tratamento e destino dado às suas informações pessoais. De acordo com a LGPD, dados pessoais só devem ser utilizados para os fins específicos para os quais foram coletados e só podem ser compartilhados com autorização dos titulares.

Outro ponto que preocupa é que o Decreto n; 10.047 cria brecha para compartilhar dados do cadastro com institutos de pesquisa. Ora, empresas privadas também têm institutos de pesquisa. Exemplos para confirmar as preocupações não faltam, como os casos Cambridge Analytica, o vazamento de informações da Receita Federal e a base de dados pública com dados de 16 milhões de equatorianos que vazou em Miami no mês passado.

Se a ideia é tornar os serviços públicos mais eficientes, deve-se reunir todos eles em um único endereço digital, de forma a facilitar o acesso. E não o contrário, ou seja, o governo ter acesso a todos os nossos dados sem que tenhamos controle. Estônia, modelo mundial de governo digital, fez isso. É verdade que lá vivem cerca de 1,2 milhão de pessoas, mas a Índia, onde vivem 1,2 bilhão, imitou. Então, é possível o Brasil se inspirar em boas práticas éticas e seguras.

A formulação dos decretos não envolveu nenhuma consulta pública ou forma de participação social, e o Comitê criado reúne apenas agentes do governo, sem representante da sociedade civil. Em julho, Bolsonaro sancionou a lei que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que ficará vinculada à Presidência e prevê um Conselho Nacional de Proteção de Dados. Dada a ojeriza demonstrada pelo atual governo à participação social e científica em conselhos, é bom ficar de olho na composição.