Na década de 1980, o avanço das técnicas de biologia molecular permitiu o estudo de alterações gênicas causadoras do câncer. Tentava-se compreender o porquê de certos tumores simplesmente ignorarem potentes quimioterapias e serem completamente resistentes aos tratamentos. Nesse contexto, identificou-se que a amplificação (aumento significativo no número de cópias) do gene ErbB-2 (ou simplesmente HER2) era um fator de mau prognóstico em tumores de mama. Essa alteração genética causava um grande aumento na expressão da proteína HER2 na superfície da célula tumoral, resultando em vantagem para os tumores, sobretudo um aumento da proliferação das células e resistência aos mecanismos de morte celular.
Em outras palavras, pacientes que apresentavam tumores com altas taxas de HER2, ou seja, tumores HER2-positivo tinham piores resultados com a quimioterapia convencional e maior mortalidade. Essa história começou a mudar graças à obstinação de cientistas das áreas básicas, tais como a química orgânica, farmacologia e biologia molecular, e também pela persistência e resiliência de um médico e cientista norte-americano chamado Dennis J. Slamon.
O dr. Slamon participou da caracterização desses tumores e foi o primeiro a estabelecer uma associação entre a superexpressão da molécula de HER2 e um pior prognóstico em casos de tumores da mama. Além disso, ele também sabia da existência de uma molécula nova, desenvolvida como um anticorpo capaz de reconhecer e se ligar justamente nessa molécula chamada HER2. Testes liderados por ele demonstraram que células e animais tratados com uma medicação semelhante conseguiram melhorar significativamente a resposta ao tratamento.
Baseado nesse conjunto de dados experimentais, o primeiro estudo clínico com pacientes portadores de câncer de mama HER2-positivo foi iniciado em 1991, quando voluntários começaram a receber o tratamento. Os resultados do estudo foram promissores, mas logo percebeu-se que o efeito do tratamento era melhor quando o tal anticorpo, batizado de Trastuzumabe, era dado em combinação com a quimioterapia.
Em 1998, o Trastuzumabe foi aprovado nos Estados Unidos para o tratamento de pacientes com câncer de mama HER2-positivo avançado. Em 2005, após novos estudos clínicos com milhares de voluntários, o Trastuzumabe também foi aprovado para a doença inicial. Essa história é emblemática por demonstrar a importância da pesquisa básica andar em conjunto com a pesquisa em seres humanos.
O sucesso do Trastuzumabe mudou o modelo de desenvolvimento clínico de novas terapias e inaugurou a era da medicina de precisão na Oncologia. Hoje, é fundamental para todo caso de câncer de mama a solicitação do teste de HER2, seja pelo método da imunohistoquímica, seja por algum método de biologia molecular. Caso o teste resulte positivo, fica confirmado o subtipo HER2-positivo, e os pacientes devem receber medicações que bloqueiam essa proteína, dentre elas o Trastuzumabe.
Sem dúvida, foi uma revolução no tratamento capaz de modificar a história dessa doença, salvando a vida de milhões de pacientes HER2 positivos em todo o mundo, sendo hoje um dos subtipos de câncer de mama mais favoráveis. A pesquisa científica não é luxo, mas sim condição necessária para o desenvolvimento de uma nação e, mais importante, a evolução da humanidade.
Por todos esses esforços e descobertas e, principalmente, pelo impacto positivo na vida de milhões de pessoas que receberam o Trastuzumabe nos últimos 25 anos, o dr. Slamon recebeu, com os cientistas H. Michael Shepard e Axel Ullrich, a maior honraria em pesquisas médicas dos Estados Unidos: o prêmio Lasker-DeBakey Clinical Medical Research Award de 2019. Registra-se a nossa admiração e fica o nosso muito obrigado!
Por fim, a história do câncer de mama HER2-positivo é um bom exemplo de como qualquer avanço da medicina precisa estar em consonância com o acesso da população aos serviços e tecnologias de saúde. No Brasil, apenas em 2017, com um atraso de quase 20 anos, o Trastuzumabe foi incorporado na rede pública para tratar o HER2 positivo. Desde então, persiste como a única disponível, embora outras três medicações com aumento de sobrevida comprovadas estejam à disposição de pacientes na rede privada.
A luta dos profissionais de saúde, gestores, pacientes e familiares pela valorização da ciência deve ser constante. Além disso, para que histórias como a do Trastuzumabe aconteçam no Brasil, precisamos avançar na pesquisa em seres humanos, desburocratizando e acelerando esse processo, com incentivos e difusão do conhecimento em todo o país.
*Pós-doutorado em oncologia no Dana-Farber Cancer Institute, Harvard Medical School e coordenador de medicina translacional no Hospital Sírio-Libanês-Brasília