O elenco de direitos e garantias fundamentais do art. 5; da Constituição ampara indiscriminadamente a todos, sem distinções de raça, sexo, cor, idade, nacionalidade, meios econômicos, posição social. Ninguém, portanto, será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e, se acusado, em processo judicial ou administrativo, terá assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5;, LIV e LV).
Na condição de ministro do Tribunal Superior do Trabalho, deparei-me com situações nas quais o réu foi prejudicado porque, em instância inferior, não lhe foi assegurado o devido processo legal, ou o juiz deixou de lhe garantir amplo direito de defesa. O meu primeiro encontro com o arbítrio ocorreu em 1961, ao dar os primeiros passos na advocacia. Determinado indivíduo invadiu certa loja durante a madrugada e furtou mercadorias, fugindo para município vizinho. Ao receber a queixa feita pelo proprietário, o delegado local procedeu a rápida investigação e seguiu no encalço do delinquente, localizado, preso e trazido de volta. Lavrado o auto de prisão flagrante, foi recolhido à cadeia.
[SAIBAMAIS]Procurado por familiares do acusado, consultei o inquérito e constatei a violação do devido processo legal. Diz o art. 4; do Código de Processo Penal (CPP) que a polícia judiciária ;será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas jurisdições;. Competia, portanto, ao delegado de Capivari apresentar o suspeito ao colega do município, onde efetuou a prisão, ao qual caberia proceder ao interrogatório e à lavratura do flagrante. Era caso de reduzido valor, com identificação e prisão poucas horas após a ocorrência. O devido processo legal, entretanto, não poderia deixar de ser respeitado. Assim, decidiu o juiz de direito ao conceder habeas corpus e pôr em liberdade o acusado.
De maneira geral, as autoridades policiais não se dão ao trabalho de observar rigorosamente o devido processo legal. Prisões e inquéritos, sobretudo de pequenos marginais, são levados a efeito de qualquer maneira, resultando, tempos depois, em absolvições inexplicáveis aos leigos, ou concessões de alvarás de liberdade dias, semanas, meses, anos depois de prisões que não observaram o devido processo legal ou impediram o exercício do amplo direito de defesa.
A delação ou colaboração premiada, como meio de produção de prova em processo crime, é novidade no direito brasileiro. O criminoso que contribuir efetiva e voluntariamente (sic) para a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa; revelar a estrutura hierárquica e divisão das tarefas; prevenir infrações penais; tornar possível a recuperação total ou parcial do produto do crime; ou para localizar e preservar a integridade física da possível vítima; poderá ser perdoado, ter reduzida em até 2/3 a pena prevista em lei ou tê-la substituída por medida alternativa, a critério do juiz (Lei n; 12.850, de 2/8/2013).
O delator, cuja delação foi homologada, deixa de ser apenas réu para se converter, voluntariamente ou moralmente coagido, em assistente de acusação. Assume dupla personalidade: é acusado, mas, para se defender e levar vantagem, revela tudo o que sabe e soma esforços à acusação. Quando o Ministério Público, autor da ação penal, busca auxílio do delator, celebra acordo e o encaminha ao juiz com pedido de homologação, ganha o valioso apoio de quem, como informante ou coautor do crime, conhece por dentro os fatos. O Código de Processo Penal (Decreto-Lei n; 3.689, de 3/10/1941), editado por Getúlio Vargas durante o Estado Novo, sob a Carta Constitucional de 10/11/1937, preserva as raízes autoritárias. Não obstante, traça nítida separação entre juiz, Ministério Público, acusado e defensor, e os assistentes do acusador. São personagem distintos, com funções inconfundíveis dentro dos autos. Ao juiz incumbe prover a regularidade do processo, ao Ministério Público promover e fiscalizar a execução da lei, ao advogado patrocinar a defesa do acusado, fazendo uso de todos os meios previstos na Constituição e na lei.
Juízes que estabelecem parceria com promotores e lhes transmitem instruções, ou impedem o réu de ter acesso ao conteúdo da delação, infringem os princípios do processo penal. No processo, o último a falar é o advogado de defesa. Negar-lhe o conhecimento da acusação, robustecida pela delação, acarretará nulidade por violação do devido processo legal e negação do pleno direito de defesa.
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho