A lógica das agências reguladoras brasileiras é tão mal compreendida quanto incensada. A bem da verdade, sua ideia central é bastante simples e não tem vieses ideológicos fixos, mas se ajusta a vários modelos. Ao contrário das estadunidenses, que nasceram ao final do século 19 para inibir abusos dos agentes privados e preservar a livre concorrência, as brasileiras surgiram 100 anos depois, com objetivos múltiplos. Existem as que disciplinam mercados privados de interesse público (medicamentos, por exemplo), ao lado das que regulam setores econômicos de titularidade pública. Estas últimas são mais um de nossos ornitorrincos jurídicos.
Isso porque a Constituição atribuiu aos Poderes Públicos (União, Distrito Federal, estados e municípios) gama específica de bens e serviços. São setores econômicos que demandam investimentos intensivos. Ambientes que nasceram e se desenvolveram a partir de estruturas monopolísticas estatais, como os aeroportos, portos, petróleo, gás canalizado, transportes públicos, telecomunicações, energia elétrica, ferrovias, água e saneamento, entre outros. São atividades que podem ser transferidas por tempo certo à iniciativa privada, mediante negócios jurídicos de autorização, concessão e permissão.
Tais negócios estão inseridos em ambientes de elevada complexidade técnica e exigem constantes incentivos à melhoria na prestação e, em alguns casos, à criação de ambientes concorrenciais. São as autorizações, concessões e permissões que geram aportes privados em setores de interesse público. Investimentos de longa maturação, que exigem respeito aos contratos durante décadas. Justamente aqui entram em cena algumas das peculiaridades da nossa regulação independente.
Ora, as agências brasileiras que disciplinam esses setores surgiram com o dever de conferir estabilidade e segurança jurídica a contratos de longo prazo ; com o intuito de os imunizar da política e do poder econômico dos agentes privados. Prestam-se a disciplinar, com imparcialidade técnica, a gestão, por pessoas privadas, de bens e serviços públicos. Permitem, assim, que os serviços sejam prestados em atenção à lei e aos contratos ; e não ao governante de plantão, nem à avidez privada. Imparcialidade e competência técnica, são essas as palavras-chave.
Todavia, algumas leis e contratos subverteram essa lógica. Isso porque existem agências que ocupam o polo ativo nas contratações e, ao lado dessa condição de parte, têm competência regulatória. Ou seja, o regulador disciplina o seu próprio comportamento dentro do contrato. A toda evidência, isso pode instalar conflitos de interesses. Mais: são situações que causam constrangimentos institucionais à regulação independente.
Quando a agência reguladora simultaneamente figura como parte no contrato regulado, os riscos são multiplicados. Há setores que são organizados por meio de contratos de longo prazo (investimentos, despesas, equilíbrio econômico-financeiro, metas, qualidade do serviço, fiscalização, etc, tudo é contratualizado). Quando se acresce a essa regulação contratual aquela por meio de normas e poder de polícia, aumenta-se os custos de transação e se agrava o cipoal regulatório. Situação que se torna ainda mais grave quando um só sujeito regula por meio de contratos e da soi-disant regulação técnica independente.
Com o perdão pela obviedade, quem é parte não é imparcial. A não ser em situações de autorregulação (caso da OAB e Conar), que demandam preocupações específicas, a literatura não recomenda que sejam cumuladas as posições de regulador e regulado. Ainda que não se deseje, a cotitularidade regulatória/contratual tem o condão de instalar incentivos para autobenefícios e desvios de finalidade. Para inibi-los, seria necessária a instalação de firmes sistemas de governança e autocontenção (chinese walls, compliance, etc). Mas será que mais essa multiplicação de sistemas de controle é eficiente? Afinal de contas, por que complicar? Não seria mais simples a dissociação subjetiva?
Ao que tudo indica, temos muito ainda a aprender e aprimorar no nosso sistema de agências reguladoras independentes. O prestígio ao modelo regulatório imparcial, o mais absolutamente imparcial (à moda da ;mulher de César), só gera vantagens a todos os envolvidos: ganham os usuários dos bens e serviços, o governo, os investidores privados e, mais do que todos, as próprias agências reguladoras independentes.