Jornal Correio Braziliense

Opinião

Uma carta para Lula

Caro Lula,

Há um bom tempo gostaria de ter escrito esta carta. Será curta, para poupar seu tempo. Existem boas leituras aguardando a atenção dos seus olhos aí dentro. Sei que velhos amigos dispensam formalidades. Mesmo assim, antes de tudo, quero registrar sinceros agradecimentos. Recebi como demonstração de afeto e carinho o seu desejo de comparecer à minha despedida. Lá se vão mais de 30 anos e a nossa convivência faz lembrar o provérbio ;um verdadeiro amigo é mais chegado que um irmão;. A nossa trajetória selou esse destino fraterno.

Não vou falar de reminiscências, nem pessoais, nem do projeto coletivo do país que sonhamos e compartilhamos inúmeras vezes. Nem vou perder tempo com gozações corintianas. Também não tenho muito o que contar sobre os últimos acontecimentos por aí. Estou entretido com as travessuras do seu neto Arthur, que há pouco vi brincando aqui. Mas, como cronista privilegiado aqui do alto ; com visão apurada sobre as circunstâncias humanas ; percebo certo mal-estar social. Há um desgosto no ambiente e foram registradas, aqui, avalanches de reclamações, pedidos e orações. Não é minha área, mas providências serão tomadas no tempo que não nos pertence.

Soube do impacto despertado pelo filme Democracia em vertigem, comovente registro destes mares revoltos que assolam a terra Brasil. É pena que algumas figuras públicas relevantes ignoraram a dimensão do papel histórico que a conjuntura solicitava. Divergências exigem verdadeiro espírito democrático, de modo a não desejarmos veementemente a eliminação do outro. Emulados por um cálculo político (equivocado), seduzidos pela adulação midiática e por gestos obsequiosos de ;seguidores;, essas lideranças, ao final, se apequenaram na velha tradição de Maquiavel: ;Aos amigos, os favores, aos inimigos, a lei;. Os deuses da toga, no entanto, foram muito além. Estabeleceram que, para os inimigos não resta nem sequer a lei.

Sei que você ainda continua prisioneiro de um grupo de poder que inverteu toda a lógica de aplicação do direito. A partir da premissa da culpa, foi forjada cada etapa do processo. Um jogo de cartas marcadas. Para quem como eu, que, tantas vezes percorreu as prisões e os tribunais ao lado de perseguidos políticos, experimentar a canonização de procedimentos e métodos injustos, em especial no campo sagrado do direito, causou profunda dor. Quero crer que o corpo, já fatigado e fustigado pelos últimos acontecimentos, produziu os sintomas que desorganizaram o ciclo da minha passagem pelo mundo. Uma doença, muitas vezes, é decorrência das aflições da alma.

Não quero julgá-los. É o que aprendi aqui. A história há de fazer justiça, sobretudo quando as pessoas de bem ajudam os ponteiros do tempo a avançar para o momento da reparação de erros. Felizmente existem muitos ao lado do seu bom combate. Aqui do alto, não surpreende a ação de um intrépido jornalista norte-americano ao desvendar a trama que conduziu você ao cárcere e praticamente confiscou seus direitos políticos. A virtude da imparcialidade, o dever de isenção foram destroçados. A recusa ao habeas corpus, ontem, estava predeterminada na agenda do arbítrio.

Mas sei que não vai abatê-lo porque a serenidade, ao enfrentar perseguições, vi em seu rosto na noite fria em Curitiba ao arrumarmos a sua cama. Conheço a força anterior, a capacidade de resiliência e a sua inabalável esperança por liberdade e justiça. Deixo meu abraço caloroso e saudações democráticas. Com a certeza de que lhe farão justiça,

Sigmaringa Seixas, Sig.
(Este texto é uma modesta homenagem ao ex-deputado Sigmaringa Seixas, advogado e ativista pelas liberdades democráticas. Há seis meses, o país perdeu Sig, como era conhecido pelos mais próximos. Órfãos ficaram milhões de brasileiros diante de um país embrutecido, cujo núcleo central de poder intoxica o ambiente político-econômico com soluções improvisadas, ímpetos de autoritarismo e ataques aos direitos sociais, inclusive os destinados a acolher minorias vulneráveis e assegurar a diversidade. Agora, mais do que nunca, frente a tanto ódio e a tanta intolerância, sua presença faria a grande diferença. A vida de Sigmaringa nos move e nos inspira. Aqui, hoje e no futuro.)