A reportagem era sobre violência contra mulheres, e a especialista mencionou a necessidade de romper com a mentalidade de que essa covardia ;é algo natural;, que sempre aconteceu e continuará acontecendo na sociedade. Logo me veio à mente que da mesma maneira são encarados os abusos físicos e psicológicos contra crianças e adolescentes dentro de casa. E, assim como se nega ajuda a mulheres por causa da cultura de não se meter em relacionamento de casal, a alegação para a omissão de socorro a crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos é de que pais ou responsáveis têm a prerrogativa de ;educar;, de ;corrigir; ; um salvo-conduto para espancamentos e agressões verbais.
A legislação proíbe castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes contra menores. Assim rezam a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas há um abismo entre teoria e prática, ainda mais numa sociedade conivente com a violência contra o nosso público mais vulnerável.
No mês passado, desembargadores da 3; Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) mantiveram a ;condenação; de dois anos e quatro meses de reclusão em regime inicialmente aberto ; um acinte, diga-se ; de um homem que torturou a enteada de 13 anos. A menina foi agredida com fio elétrico, cinta e um cabo de vassoura de metal. Teve uma série de lesões pelo corpo, conforme reportagem do Estadão. A conselheira tutelar que a atendeu disse que nunca tinha visto uma situação tão grave, porque a menina estava machucada do dedo do pé até a orelha. E o que o criminoso disse à polícia? ;Talvez eu tenha exagerado um pouco, mas fiz para educá-la.; Simples assim. As declarações da mãe da garota foram ainda piores: ;Minha filha prometeu que não fará isso novamente, ela está bem arrependida de ter desobedecido a uma ordem (de não receber colegas da escola em casa) e quer pedir perdão para o padrasto;. Ou seja, a vítima é culpada da tortura que sofreu!
Abusos ferem a dignidade de crianças e adolescentes e podem impactar a saúde mental deles para o resto da vida. As leis de proteção não podem ser apenas pró-forma. Se foram criadas e aprimoradas justamente porque se constatou a necessidade de protegê-los da sanha de pais ou responsáveis, por que, então, não demos o passo seguinte? Assim como ocorre no combate à violência contra mulheres, deveria haver mobilização nacional para defender menores da brutalidade doméstica. Engajamento do Estado, da iniciativa privada, de entidades, de personalidades. Se não há como monitorar cada família deste país, o caminho é a conscientização. Campanhas maciças e contínuas para quebrar esse paradigma nefasto, presente em todos os estratos sociais e replicado por gerações.