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Heróis atormentados

Dez anos depois do acidente na mina San José, em Copiapó, cinco dos 33 mineradores presos por 69 dias falam ao Correio sobre a tragédia que comoveu o planeta, o resgate com a cápsula Fênix, as sequelas psicológicas e o que mudou em suas vidas

Em 13 de outubro de 2010, assim que a cápsula Fênix subiu à superfície transportando Luis Urzua, chefe de turno da mina San José, em Copiapó, no Deserto do Atacama (norte do Chile), chegava ao fim um drama que durou 69 dias e mudou, para sempre, as vidas de 33 mineradores. O momento do renascimento trouxe inúmeros desafios. Na véspera do 10º aniversário do acidente, em 5 de agosto daquele ano, o Correio conversou com cinco dos 33 mineradores que ficaram presos a  quase 700m abaixo da superfície. 

A fama, alimentada pelo filme Os 33, estrelado por Antonio Banderas e Rodrigo Santoro, foi repentina. Hoje, os mineradores convivem com problemas de saúde e com sequelas psicológicas decorrentes do acidente —  alguns estão impossibilitados de trabalhar e dependem das pensões por invalidez (cerca de R$ 1.060) e vitalícia (ou R$ 1.590). 

Pesadelos, crises de pânico e ansiedade são comuns entre os sobreviventes, que ressignificaram a vida. Em 2018, a Justiça condenou o governo a pagar indenização de US$ 110 mil (R$ 585 mil) a cada um e isentou a mineradora San Esteban, proprietária da mina. Um recurso do Conselho de Defesa do Estado (CDE) aguarda julgamento no Tribunal de Apelações de Santiago.

Mario Sepúlveda, 49 anos, o líder 
“Dez anos depois do acidente na mina de San José, estou mais velho e mais ‘gordito’. Sigo sendo o tipo alegre, o líder. Também continuo tendo pesadelos e muitos sentimentos contraditórios. Sigo experimentando a angústia. Gostaria de voltar no tempo, para antes do desmoronamento, para brincar e rir com os meus 32 companheiros. Tenho um bom relacionamento com muitos deles. Sempre que ficamos sozinhos, começamos a ser atormentados pelo fantasma do acidente. Hoje, sigo no campo da mineração, mas não sou mais minerador. Tenho dado palestras motivacionais para conscientizar os meus companheiros sobre a questão da segurança. Voltei a descer nas minas em muitas ocasiões. Não tenho medo. Se algum dia Deus quiser me levar, quero morrer lá embaixo.

Antes do acidente, este Mario Sepúlveda era um tipo muito feliz, muito alegre, sempre com a ideia de transmitir uma palavra de alento, cooperador e trabalhador social. Hoje, Mario Sepúlveda é o mesmo de uma década atrás, porém, mais louco, com mais força, mais energia e mais vontade de viver. Depois do acidente, tive um filho autista, o qual amo com todo o meu coração. Estou construindo um centro de reabilitação para ajudar crianças autistas. Adoro o futebol e as boas pessoas. Sempre ando muito feliz, contente e, cada vez que posso, trato de orar e agradecer a Deus pelas coisas maravilhosas que Ele me tem dado.

Em relação aos psicólogos que nos atenderam, a única coisa que queriam era que disséssemos que estávamos bem, para nos darem alta. Isso evitaria que nos pagassem um salário. No âmbito financeiro, em primeira instância, nos deram uma pensão de graça. No segundo ano após o acidente, ofereceram uma pensão a 15 de nossos companheiros. Depois, fizemos gestões e conseguimos a pensão para todos. É uma pensão não muito significativa, mas, pelo menos, tenho um pequeno montante com o que contar.

Durante os 69 dias em que ficamos presos na mina, sempre houve momentos tensos e difíceis. Mas, graças a Deus, ao trabalho em equipe, à organização, à liderança, à fé com que encaramos esse acidente e à esperança de muitos, sempre soubemos suportar aqueles momentos. Cabe destacar que não houve somente um desabamento na mina, mas vários. Sempre enfrentamos isso com muita força.

Eu, pessoalmente, nunca pensei que fosse morrer. Não sou muito partidário da esperança, pois ela envolve um jogo emocional. Quando você tem esperança e as coisas não ocorrem como você deseja, vem a decepção. Eu me aferrei muito à fé. Isso nos ajudou a sair, a termos mais força e o espírito cheio de vontade de deixar a mina. O momento em que fomos resgatados da mina foi de felicidade, de alegria, repleto de sentimentos ligados à família e ao nosso querido Chile, que fez todo o possível para nos salvar. Senti gratidão pelo governo de Sebastián Piñera, pelos operários e bombeiros.

Muitos de nós (os 33) somos amigos e conversamos com frequência. Quando temos oportunidade, rimos muito e nos lembramos de muitas situações. É muito bonito poder falar com os companheiros quando possível. É claro que temos muitas diferenças e distintos interesses.”

Pedro cortez contreras, 35 anos
“Naquele 5 de agosto de 2010, quando houve o desabamento, a minha primeira reação foi pensar que todos morreríamos dentro da mina. Pensei que a mina viria abaixo e todos seríamos enterrados vivos. Os momentos mais tensos foram a escassez de alimento dentro da mina e a convivência com meus companheiros de trabalho. Nem todos éramos amigos e alguns de nós sequer nos conhecíamos. No primeiro momento, não tive fé nem esperança. Depois que nos encontraram, houve uma luz de esperança e sempre me apeguei aos padroeiros dos mineiros (São Lourenço e Virgem da Candelária). Sou bem apegado ao catolicismo.
Depois de uma década, creio que a maioria de meus companheiros tem sequelas e marcas psicológicas. A cada ano que se celebra o aniversário do acidente, tenho pesadelos e memórias. Mas, continuamos com a vida, não? Com a minha rotina normal, com o meu trabalho e com a minha família. Atualmente, todos os 33 mineiros recebemos uma pensão vitalícia, por parte do Estado, que totaliza 448 mil pesos chilenos.

Eu comparo o momento em que saí da mina com ‘voltar a nascer’. Uma sensação inexplicável de voltar a ver minha família.Naquela época, eu tinha apenas uma filha, que estava prestes a completar 8 anos. Voltar a ver a luz, a tomar ar puro e a me sentir livre. Hoje, mantenho contato com Carlos Barrios e com outros cinco dos 33, que trabalham na mesma empresa que eu. Perdi a comunicação com os 26. Soube que Mario Gomes está mal de saúde e depende de pulmão artificial.

Antes de 2010, eu era uma pessoa que não aproveitava a família e pensava apenas em farra. Depois do acidente, passei a desfrutar das coisas mais simples da vida, que são as mais valiosas. Desfruto de minha família. Tive mais uma filha, Melissa, que hoje tem 7 anos. Hoje, quando estou de folga, prefiro ficar com minha esposa e minhas meninas. Não sou mais aquele garoto de 25 anos. Sou uma pessoa mais madura, concluí meus estudos e não me queixo de meu trabalho. Não voltei a trabalhar no interior da mina. Hoje, atuo na fundição de cobre, na cidade de Potrerillos.”


josé ojeda, 56 anos, o “mensageiro”
“Eu era operador de jumbo (sistema de perfuração) e mecânico oleohidráulico na mina de San José. Depois de todos esses anos, não pude voltar a trabalhar na mineração. Não me dão emprego por conta do acidente e de minha idade. Meu estado de saúde é delicado. Tenho neuropatia diabética, condição influenciada pelo acidente: o tempo recluso, sem comida, agravou-me a diabetes. Tenho problemas renais, cardíacos e não consigo andar muito.

No dia do acidente, eu estava no nível 100 à espera do caminhão. Foi quando escutei o estrondo. Fomos até o refúgio, no nível 60 (a cerca de 700m da superfície). Os problemas mais complicados dentro da mina foram relacionados à comida. Depois daquele dia, nunca mais pude voltar a trabalhar, por conta do trauma do acidente. Tenho pesadelos e sofro de claustrofobia. A recuperação tem sido difícil, estou em tratamento psicológico.

Fui eu quem escreveu a mensagem ‘Estamos bem no refúgio, os 33’ (foto). Tive essa ideia para dar às equipes de resgate uma localização. A única coisa que sabiam era que nós estávamos lá dentro. Quando escutamos a sonda de perfuração, veio-me à cabeça que eu teria de escrever algo curto. Para mim, essa mensagem remete a algo muito sofrido. O resgate foi muito especial. Demorou 13 minutos para a cápsula Fênix subir, mas foram os momentos mais longos da minha vida. Trabalhei com mineração por mais de 30 anos. Nestes últimos 10 anos, não recebi nenhuma reparação por parte do Estado. Vivo com uma pensão mínima, e não reconheceram doenças relacionadas ao trabalho, como hipoacusia (perda auditiva)  e silicose (doença pulmonar causada pela inalação de sílica).”


Jimmy Sánchez, 29 anos, o caçula
“Em 5 de agosto, às 11h, escutei um estrondo muito forte. Meus companheiros disseram que eu ficasse tranquilo, pois o solo estava se acomodando. Por volta das 14h, sentimos um tremor muito forte. Então, dei-me conta de que era um desmoronamento. Corremos para o refúgio e tratamos de buscar a saída. Havia uma rocha gigante bloqueando a passagem. Meus companheiros tentaram fugir pela chaminé, também colapsada. Eu me assustei muito. Era um garoto de 19 anos e não tinha ideia do que estava ocorrendo. Eu me aferrei aos companheiros e a Deus.

Um momento tenso foi quando a sonda de perfuração chegava ao lado de onde estávamos e, depois, se distanciava. Pensei na morte. Um dia antes de nos encontrarem, não sentia as pernas. Eu me vi sem força, sem energia. Tive de me apegar à esperança e à fé. Os que não eram crentes viram-se obrigados a sê-lo. Tivemos de orar muito. Isso servia como meditação para que ficássemos mais calmos. Ao sair da mina, a sensação foi de emoção, alegria. Voltar a nascer, a ver a luz, o sol, as pessoas que amo... Foi muito bonito.

Minha vida  mudou uns 80%. O acidente deixou muitas sequelas. Nunca me esquecerei do que enfrentamos. Tomo comprimidos para dormir e para controlar a ansiedade. Tenho pesadelos recorrentes. Eu gostaria de esquecer o que vivi. Até hoje, não encontrei um trabalho estável. Por ser um dos 33, não consegui seguir na mineração. Fecharam-me várias portas. Pelo fato de terem feito um filme sobre nós, as pessoas acham que temos dinheiro e nos criticam. Em 2014, o governo chileno começou a pagar uma pensão à metade dos mineradores que faltavam.

Tenho três filhos, sou casado, e tenho muito desejo de viver para minha família. Hoje, moro com meus pais, meus imãos e cunhados. Somos 20 pessoas dividindo uma casa. Pedi ajuda ao governo chileno para ter um lar, mas nunca me escutou. Preciso de ajuda para ter minha casinha.”


Carlos barrios, 37 anos
“Entre 2012 e 2016, tive crise de pânico e dores de cabeça. Mas, me tratei e os exames detectaram inflamação no cérebro. Às vezes, sinto dores de cabeça fortes quando me estresso. Nestes 10 anos, passei por uma transformação tremenda. Posso dizer que saí mais maduro e que o acidente fez-me ‘aterrissar’ como pessoa. Às vezes, vemos o dinheiro e não percebemos que há coisas mais importantes na vida, como a família. À época do acidente, eu tinha 27 anos, era jovem e vivia de modo mais liberal. Hoje, estou 200% mais dedicado à minha família. Creio que eu e os 32 companheiros nunca conversamos sobre o que se  passou. Tivemos muitos probemas para nos reintegrarmos aos trabalhos.

Hoje, moro em Copiapó e  trabalho na mina Alcaparroza. Eu me recordo daquele 5 de agosto de 2010. Depois do desmoronamento, quando a situação começou a acalmar, passamos a avaliar a situação e a buscar a saída. Ajudei a armar a chaminé de ventilação para subir ao nível 210. O mais tenso foi nos dar conta de que estávamos presos e que talvez nunca mais veríamos nossas famílias. Eu me preparei para o pior. Todos os dias, escutava as palavras que José Henriquez (um dos 33 mineradores, religioso) nos trazia. Isso nos dava  forças para seguir aguentando, dia após dia.
 
Nunca mais me esquecerei de quando via a cápsula Fênix subindo à superfície. Eu me lembro de que, quando subi, um raio de luz chegou até mim. A sensação foi maravilhosa. Voltar a sentir o sol. As pessoas gritavam. Eu estava tão feliz que queria voar.”