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Danos cardíacos ficam após fim da covid-19

Dois novos estudos mostram como o Sars-CoV-2 pode afetar o funcionamento do coração a longo prazo. Em um deles, 78% dos pacientes apresentaram comprometimento no músculo do órgão 71 dias depois de terem se curado do novo coronavírus


A medida que os cientistas conhecem melhor a covid-19, mais identificam sinais de que algumas complicações desencadeadas por essa doença podem provocar danos persistentes ao organismo. Duas pesquisas desenvolvidas na Alemanha e divulgadas ontem reforçaram essas suspeitas. Um dos estudos revelou que indivíduos infectados pelo Sars-CoV-2 apresentaram inflamação no tecido cardíaco meses após a recuperação. O outro trabalho confirmou a presença do vírus no miocárdio (parede cardíaca) em pessoas que faleceram em decorrência da enfermidade. As duas investigações foram publicadas na revista especializada Jama Cardiology.

No primeiro estudo, os pesquisadores contaram com a participação de 100 pacientes, que foram submetidos a exames de ressonância magnética periodicamente. Por meio da tecnologia, os investigadores comprovaram que a maior parte dos analisados sofreu danos no músculo cardíaco mesmo 71 dias após terem se recuperado da covid-19. “Nossas análises revelaram comprometimento cardíaco em 78 pacientes (78%) e inflamação miocárdica em andamento em 60 pacientes (60%), independentemente de condições preexistentes, gravidade e curso geral da doença”, detalham os autores no trabalho, liderado por Valentina O. Puntmann, do Hospital Universitário de Frankfurt.

Os pesquisadores destacam que os dados obtidos servem de alerta para a possibilidade de danos mais graves à saúde cardíaca em pacientes infectados pelo Sars-CoV-2. “Embora os efeitos a longo prazo dessas alterações na saúde que foram vistas no estudo ainda não tenham sido estudados, sabemos que esse tipo de anormalidade pode agravar cardiomiopatias inflamatórias (…) Essas descobertas indicam a necessidade de investigação contínua das consequências cardiovasculares a longo prazo da covid-19”, enfatizam os autores.

Lázaro Fernandes de Miranda, cardiologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e conselheiro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), destaca que a pesquisa aprofunda informações já percebidas por profissionais da área. “Algumas pesquisas haviam apontado para o efeito da covid-19 no tecido cardíaco, e esse trabalho reforça essa questão com dados bastante sólidos. A ressonância magnética é um dos recursos mais sensíveis para fazer essa análise, mais que o eletrocardiograma e a tomografia cardíaca, por exemplo, apontando, assim, com veracidade, que essas alterações podem ocorrer”, explica.

Segundo o médico, os efeitos provocados pela covid-19 no músculo cardíaco, inclusive após a recuperação da doença, podem ser desencadeados devido a uma reação do sistema imune. “Mesmo quando essa pessoa se cura, podem ficar resquícios do patógeno, e isso faz com que o sistema de defesa continue agindo contra ele e gere essa inflamação”, explica.

Genoma viral

Em um segundo estudo, cientistas analisaram autópsias de 39 pacientes que faleceram com covid-19 e constataram a presença do patógeno no tecido cardíaco em 60% dos casos. “O genoma viral estava presente no tecido do miocárdio em uma parcela considerável do grupo analisado. E esses dados estão de acordo com trabalhos anteriores que mostraram como os receptores de Sars-CoV-2 são expressos nas células do miocárdio”, detalham, no artigo, os cientistas liderados por Diana Lindner, pesquisadora do Departamento de Cardiologia e área vascular do Centro Universitário do Coração, na Alemanha.

Para Lázaro Miranda,  o trabalho também contribui ao aprofundar o entendimento sobre danos no coração causados pelo novo coronavírus. “O estudo é bastante interessante, muitas pesquisas vêm sendo feitas com cadáveres, e essas descobertas apontam para os mesmos dados que temos visto nos pacientes tratados: a presença do vírus no músculo cardíaco, podendo, assim, gerar uma inflamação”, justifica.

Quatro tipos
 
São inflamações do músculo do coração, o miocárdio, que o enfraquecem e atrapalham o bombeamento do sangue. Existem quatro tipos: a dilatada, que expande o tecido e atinge pessoas de 20 a 60 anos; a restritiva, quando o músculo cardíaco se torna duro e rígido; a cardiomiopatia hipertrófica, que se caracteriza pelo espessamento das paredes do coração; e a arritmogênica do ventrículo. Esse último é raro e ocorre quando o tecido do músculo cardíaco é substituído por um tecido cicatrizado, afetando os sinais elétricos do coração.

 » Palavra de especialista
Atenção também aos grupos de risco
“Assim como esse estudo da revista Jama mostrou essa taxa alta, de 78 pacientes com inflamação cardíaca, temos observado o mesmo na prática clínica, enquanto atendemos pessoas que sofrem com essa enfermidade. Esses dados reforçam a necessidade de acompanhar o paciente mesmo depois de recuperado e de ficar atento a complicações possíveis no sistema cardíaco e também no respiratório, que são os mais atingidos pela doença. Essas novas informações também nos ajudam a reforçar ainda mais os cuidados que  precisamos ter com pessoas que são do grupo de risco, como os cardiopatas. No caso deles, as complicações podem ser ainda mais graves.”
Ludhmilla Hajjar, professora de cardiologia da Universidade de São Paulo (USP) e cardiologista intensivista da Rede D’Or de hospitais.

“Mesmo quando essa pessoa se cura, podem ficar resquícios do patógeno, e isso faz com que o sistema de defesa continue agindo contra ele e gere essa inflamação (no músculo cardíaco)”
Lázaro Fernandes de Miranda, cardiologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e conselheiro da Sociedade Brasileira de Cardiologia

» Teste de vacina em fase final
 A farmacêutica Moderna  anunciou, ontem, que deu início ao estágio final dos testes clínicos da sua candidata à vacina para a covid-19. Participarão dessa etapa 30 mil adultos sem registro da doença respiratória. O objetivo da empresa americana é avaliar a segurança da fórmula de imunização mRNA-1273 e determinar se ela pode evitar a doença causada pelo novo coronavírus após a aplicação de duas doses. O governo dos Estados Unidos apoia o projeto com quase U$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 5,21 bilhões), e a previsão da Moderna é de que a fórmula fique pronta até dezembro. A empresa americana pretende fornecer 500 milhões de doses por ano, chegando a 1 bilhão de doses por ano, a partir de 2021. Após o anúncio da fase mais avançada dos ensaios clínicos, as ações da farmacêutica subiram 11%.