Foi quase um lembrete de que o presidente dos Estados Unidos deve prestar contas à Justiça, assim como qualquer outro cidadão. A 117 dias das eleições de 3 de novembro, a Suprema Corte norte-americana decidiu, por 7 votos a 2, que um procurador do distrito de Manhattan poderá ter acesso a oito anos de declarações de imposto de renda de Donald Trump. No entanto, pelo menos placar, a máxima instância do Judiciário impediu aos comitês da Câmara dos Representantes, de maioria democrata, analisarem os documentos. Desde o governo de Richard Nixon (1969-1974), os presidentes dos EUA não se opunham à divulgação de seus dados fiscais. “Má conduta fiscal”, escreveu Trump em seu perfil, minutos depois da decisão da Suprema Corte. “Isso é tudo perseguição política. Eu venci a caça às bruxas de (Robert) Mueller (promotor especial), e agora tenho de continuar lutando em uma Nova York politicamente corrupta. Não é justo com este presidente ou com o governo!”, acrescentou.
Ao explicar a decisão da Justiça, o juiz conservador John Roberts Jr. lembrou que, dois séculos atrás, “um grande jurista de nossa Corte estabeleceu que nenhum cidadão, nem mesmo o presidente, está categoricamente acima do dever comum de apresentar provas quando solicitado em processos criminais”. “Reafirmamos esse princípio hoje”, sublinhou o chefe da Suprema Corte. Especialistas avaliaram ao Correio o peso político e jurídico para Trump.
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan e ex-procuradora federal chefe para o Distrito Leste de Michigan, Barbara McQuade considera que o principal ponto de inflexão das decisões da Suprema Corte reside no fato de que o presidente não está acima da lei e deve cumprir com as prováveis intimações do Congresso. “No caso solicitado pelo procurador de Manhattan (Cyrus Vance Jr.), a Corte rejeitou o argumento de Trump para imunidade absoluta, e o mesmo retornará aos tribunais inferiores para mais procedimentos”, disse. “Em relação ao Congresso, o reenvio do tema às Cortes inferiores visa garantir que o Legislativo não abuse de seu poder para fins políticos. Em suma, os dois casos representam um forte apoio do Estado de direito.”
Richard Lempert, professor de direito e de sociologia na Universidade de Michigan, admitiu que Trump perdeu suas reivindicações mais amplas de imunidade. “Nenhum documento do presidente será entregue à Câmara dos Representantes. No entanto, ela poderá reformular suas intimações e reeditá-las com uma justificativa melhor”, comentou.
O estudioso aposta que, se Trump for reeleito em novembro e os democratas ainda controlarem a Câmara ou o Senado, isso dará ao presidente menos proteção do que ele deseja. “Nesse cenário, a Câmara poderá apresentar uma intimação aos bancos e aos contadores de Trump. Com frequência, ele toma ações que o tornam vulnerável a ataques políticos”, sustentou Lempert. Ele espera que os principais eleitores se apeguem a Trump, não importam as manchetes dos jornais financeiros, e os adversários permaneçam horrorizados e com mais munições para alimentar suas objeções ao republicano.
“Cale a boca”
A oposição à Casa Branca teve, ontem, um prato cheio para disparar contra Trump. O ex-vice-presidente Joe Biden, candidato do Partido Democrata à Presidência dos EUA, reagiu com ironia à questão das declarações de renda. “Como eu dizia”, publicou em seu Twitter, ao compartilhar vídeo divulgado em 16 de outubro de 2019. “Senhor presidente, quer falar sobre corrupção? Eu liberei 21 anos de minhas declarações de imposto de renda. (…) Senhor presidente, divulgue seus dados fiscais ou cale a boca”, disse na gravação. Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi prometeu seguir pressionando para que os parlamentares recebam os registros financeiros de Trump. “O Congresso continuará supervisionando para o povo, mantendo a separação de poderes, que é a grande coisa em nossa Constituição”, anunciou a democrata. “Continuaremos a pressionar nosso caso nos tribunais inferiores.”
De acordo com a revista Forbes, na lista dos 2.095 bilionários do planeta, Trump aparece na posição 1.286ª, com US$ 2,1 bilhões de patrimônio. O republicano fez da sua fortuna uma questão de campanha eleitoral. A falta de transparência tem abastecido especulações sobre o tamanho de sua riqueza e sobre a procedência dos ativos, com a possibilidade de conflitos de interesse.
Dinheiro para silenciar atriz pornô
Cyrus Vance Jr., procurador do distrito de Manhattan e simpatizante do Partido Democrata, busca informações sobre um pagamento de 2016 feito por Donald Trump para supostamente comprar o silêncio da atriz pornô Stormy Daniels (foto), com quem o magnata teria mantido um caso extraconjugal. O repasse do “dinheiro secreto” não figura nos registros da conta da campanha do Partido Republicano. Em nota à imprensa, Vance afirmou que “esta é uma tremenda vitória para o sistema de Justiça dos EUA e de seu princípio fundamental de que ninguém — nem mesmo um presidente — está acima da lei”. “Nossa investigação, que foi adiada por quase um ano devido a esse processo, será retomada, guiada como sempre pela solene obrigação do grande júri de seguir a lei e dos fatos, onde quer que possam levar”, declarou o procurador.
“Duzentos anos atrás, um grande jurista de nossa Corte estabeleceu que nenhum cidadão, nem mesmo o presidente, está categoricamente acima do dever comum de apresentar provas quando solicitado em processos criminais”
John G. Roberts Jr., presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos
Ponto crítico
As decisões da Suprema Corte em relação aos dados fiscais de Trump representam uma vitória do presidente?
NÃO
» Barbara McQuade
“Esta foi uma vitória temporária para Trump, mas, no geral, trata-se de uma derrota. Ele será capaz de utilizar essas decisões para atrasar ainda mais a produção de documentos, possivelmente depois da eleição. Em última análise, os dados serão divulgados à Promotoria de Justiça de Manhattah, que poderá usá-los para acusar Trump de um crime. O Congresso, por sua vez, poderia usá-los para mudar leis ou forçar o impeachment do presidente.”
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan e ex-procuradora federal chefe para o Distrito Leste de Michigan
SIM
» Richard Lempert
“Do ponto de vista político, Trump venceu em ambas as decisões, pois seu principal interesse parece ser manter os dados fiscais sob sigilo até depois das eleições de novembro. As duas decisões lhe permitem fazê-lo. Trump perdeu no princípio de que suas reivindicações mais amplas de imunidade foram rejeitadas pela Suprema Corte. Mas, a rejeição a essa proteção absoluta não é tão ruim assim. Ele deverá ser capaz de manter as informações longe do público.”
Professor de direito e de sociologia da Universidade de Michigan