Mundo

Conexão diplomática




Hora de calçar as sandálias

Meio século atrás, um clássico da literatura, adaptado para o cinema, captou o momento agudo da Guerra Fria, com o risco nada fictício de um confronto nuclear, pela perspectiva da diplomacia vaticana. As sandálias do pescador, do escritor australiano Morris West, tem por protagonista um papa saído “do fim do mundo”. A mesma expressão usada pelo cardeal argentino Jorge Bergoglio ao se apresentar para o mundo com o nome pontifício de Francisco.

No romance de Morris West, o sucessor do apóstolo Pedro — o pescador cujas sandálias representavam a vida simples de Jesus e seus seguidores — vem da (hoje extinta) União Soviética. E herda as vestes e os poderes de chefe da Igreja Católica com o mundo à beira de uma confrontação entre URSS e EUA.

No filme de 1968, o fator imediato de risco para a paz mundial é a China. Àquela altura, o regime comunista de Mao Tsé-tung estava mergulhado na anarquia da Revolução Cultural e às voltas com disputas fronteiriças. Os rivais eram a URSS e a Índia, na época firme aliada de Moscou.

Repete ou não repete?

Em um de seus textos mais celebrados, Karl Marx sustenta que atos e personagens da história voltam à cena como farsa ou tragédia. O desenrolar da escalada de tensão entre China e Índia nos confins do Himalaia — por sinal, cenário escolhido pelo humanista Frank Capra para seu filme Horizonte perdido — dirá se o enredo de Morris West se repete hoje. E, em caso afirmativo, em qual das duas modalidades aventadas pelo pai do materialismo histórico.

Mil anos de janela

China e Índia são, hoje, Estados que dão forma a civilizações anteriores em muitos séculos à Era Cristã — e, por conseguinte, à Igreja como instituição. Praticaram a diplomacia, de variadas formas, quando Roma engatinhava.

Ainda assim, a Santa Sé pode clamar para si a primazia no estabelecimento de um corpo estatal orgânico, profissional e permanente dedicado a pensar, planejar e executar política externa. O menor Estado do mundo, seja por área ou população, exerceu ao longo dos últimos mil anos papel-chave no desenlace de disputas cruciais para o curso da história.

Berlim e Moscou

O cardeal polonês Karol Wojtila, cuja eleição como sucessor do brevíssimo João Paulo I — o sorridente italiano Albino Luciani — imitou, de certo modo, o enredo de Morris West e foi determinante para a cadeia de eventos que decidiu a Guerra Fria. Dividiu com o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, o protagonismo do xeque-mate à URSS de Mikhail Gorbachov.

A intervenção de João Paulo II em apoio ao sindicalismo católico polonês e a outras formações dissidentes no bloco soviético deu a elas visibilidade e algum nível de proteção.

Antes mesmo da queda do Muro de Berlim, em 1989, os protegidos do papa assumiram o governo da Polônia. No fim de 1991, a União Soviética deixou de existir.

Washington e Havana

Nos sete anos de pontificado, embora imerso em uma difícil luta política nos interiores da Santa Sé, Francisco tem marcado posição em temas centrais da agenda global. Em mais de uma ocasião, pareceu encarnar o Kiril de As sandálias do pescador, vivido na tela por Anthony Quinn.

O papa “do fim do mundo”, o primeiro da (ainda) católica América Latina, deu seu toque local ao desmanche da Guerra Fria. Apadrinhou o reatamento de relações diplomáticas entre os EUA e Cuba, após meio século de rompimento.

Mesmo a política agressiva escolhida por Donald Trump foi incapaz de reverter o passo histórico dado por Barack Obama e Raúl Castro, no fim de 2014 — ao menos até aqui.



A Santa Sé pode clamar para si a primazia no estabelecimento de um corpo estatal para a política externa