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Sob a lei da repressão

No primeiro dia em vigor da nova legislação de segurança nacional, 370 manifestantes são presos pela polícia de choque. Agentes usam spray de pimenta e canhões d%u2019água para dispersar milhares de pessoas que lembravam o 23º aniversário do domínio chinês









A ocasião e a mensagem enviada parecem ter sido escolhidas a dedo. A Lei de Segurança Nacional de Hong Kong começou a vigorar, ontem, um dia depois de sua promulgação, com a prisão de 370 ativistas pró-independência — entre os milhares que saíram às ruas da ex-colônia britânica para recordar o 23º aniversário de sua devolução à China. Na terça-feira, o presidente chinês, Xi Jinping, sancionou a legislação, comparada por especialistas a uma pá de cal sobre o modelo “um país, dois sistemas” e  a semiautonomia do território de 7,2 milhões de habitantes. Analistas e a comunidade internacional creem que o texto abra espaço para Pequim cimentar o domínio autoritário sobre a metrópole financeira. Pelo menos nove dos detidos foram acusados de violar a nova lei, um homem e uma mulher por portarem  bandeira e faixa a favor da soberania de Hong Kong. Segundo o jornal South China Morning Post, um agente foi esfaqueado durante confronto com manifestantes. A polícia usou spray de pimenta e canhões d’água para dispersar a multidão.

Carrie Lam, chefe do Executivo de Hong Kong, exaltou a lei como “o mais importante desdobramento na relação entre os governos central e de Hong Kong desde a devolução (do território)”. A nova legislação permite a repressão a quatro tipos de crimes: subversão, secessão, terrorismo e conluio com forças estrangeiras. O texto também prevê a possibilidade de penas severas, inclusive prisão perpétua, e elimina a barreira legal que havia entre o sistema judicial da cidade e as Cortes controladas pela China continental. Em tese, Pequim pode julgar diretamente delitos classificados de “ameaças graves e reais” contra a segurança nacional. O governo de Xi advertiu outros países de que Hong Kong é um assunto interno da China.

“Hoje (ontem), vimos evidências da determinação da força policial de Hong Kong de acelerar ainda mais os esforços intensos para manter as pessoas fora das ruas. Isso foi mostrado por meio das detenções em massa e do uso de canhões d’água contra manifestantes, pedestres e até jornalistas”, declarou ao Correio o historiador Jeff Wasserstrom, professor da Universidade da Califórnia - Irvine e autor de Vigil: Hong Kong on the brink (“Vigília: Hong Kong no limite”, pela tradução livre). “Também vimos evidências de que o povo de Hong Kong está determinado a resistir ao que vê como um golpe contra as liberdades. A nova Lei de Segurança Nacional foi imposta sem a participação do governo de Hong Kong”, acrescentou.

Wasserstrom adverte que alguns ativistas presos poderão enfrentar penas mais duras. “A polícia deixou claro que passará a tratar gestos simbólicos — como ostentar bandeiras ou gritar slogans considerados tabus — como algo tão sério como outros atos de violência.”



Liberdades

Ex-líder estudantil em Pequim e sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, Zhou Fengsuo afirmou ao Correio que os manifestantes de Hong Kong estão defendendo suas liberdades e sua dignidade depois da aprovação da Lei de Segurança Nacional. “Suas prisões expuseram a natureza impopular e injusta da Lei de Segurança Nacional. Entre os 370 presos, nove foram detidos sob essa legislação. Tudo porque carregavam faixas com a frase ‘Independência de Hong Kong’. É direito deles exigir independência de um regime totalitário. Eu os apoio”, disse.

Fengsuo admite que  Hong Kong vive “dias sombrios”. “Com a Lei de Segurança Nacional, o Partido Comunista Chinês (PCC) impõe seu regime totalitário sobre a região, arrastando liberdades e o Estado de direito. Ele até criminaliza pessoas de fora de Hong Kong pelo mesmo ‘crime’ que penalizam na cidade. O ‘escritório’ de Hong Kong responderá apenas a Pequim, desrespeitando a Corte e as opiniões dos cidadãos do território. É uma medida mais severa e mais draconiana do que esperávamos.”

Também sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial, a jornalista Rose Tang disse à reportagem que as prisões de ontem expõem o confronto entre Pequim e o povo de Hong Kong e indicam que nenhum dos lados deve recuar. “Pequim adota uma tática tradicional: matar uma galinha para assustar os macacas, segundo um provérbio chinês. A recém-aprovada Lei de Segurança Nacional confere ao governo de Hong Kong mandato para mais brutalidade policial e prisões arbitrárias em massa, além do disparo de gás lacrimogêneo e de canhões d’água”, explicou à reportagem a ex-ativista, que morou em Hong durante seis anos e hoje vive em Nova York.

Para Tang, as lideranças do PCC, especialmente Xi, não sabem como lidar com a dissidência. “O PCC simplesmente se recusa e encarar o povo de Hong Kong de maneira aberta e democrática. É incrivelmente temerário que a revolução de Hong Kong espalhe-se pela China. Não se trata de uma preocupação com o futuro do território, mas com o fato de o regime ser desafiado constantemente pelo povo de Hong Kong, aos olhos abertos do mundo”, comentou. Ela vê Hong Kong como “uma ferida aberta no regime brutal do PCC, que não pode ser fechada”.