No primeiro caso centrado no aborto desde a nomeação de dois juízes por Donald Trump, a Suprema Corte dos Estados Unidos desferiu, ontem, um novo golpe contra o presidente republicano e sua agenda conservadora (leia a Análise da notícia). Em votação apertada (cinco contra quatro), a máxima instância do Judiciário bloqueou uma legislação de Louisiana considerada controversa, a qual impunha restrições à interrupção da gravidez. Aprovada em 2014, ela impedia as clínicas de realizarem o procedimento cirúrgico, caso não tivessem acordos para enviar as pacientes a hospitais localizados a menos de 50km de distância e de maior complexidade.
A decisão foi marcada, mais uma vez, pelo alinhamento do juiz John G. Roberts Jr., presidente da Suprema Corte e de tendência conservadora, com os magistrados liberais. A Casa Branca adotou o termo “infeliz” para referir-se ao bloqueio da lei. “A Suprema Corte desvalorizou a saúde das mães e as vidas dos nascituros (fetos)”, declarou a porta-voz, Kayleigh McEnany. “Em vez de avaliar princípios democráticos fundamentais, juízes não eleitos se intrometeram nas prerrogativas soberanas dos governos estaduais, impondo a própria preferência política em favor do aborto.”
Ao justificar o voto com inclinação progressista, John Roberts disse que a legislação de Louisiana “impõe uma carga sobre o acesso ao aborto tão severa como a imposta pela lei no Texas e pela mesma razão”. “Por este motivo, a lei de Louisiana não pode permanecer, de acordo com os precedentes”, explicou.
Em entrevista ao Correio, Paul R. Baier, professor do Centro de Direito da Universidade Estadual de Louisiana, em Baton Rouge, afirmou que a decisão da Suprema Corte “se aplica a toda a nação em virtude da Cláusula de Supremacia da Constituição dos EUA”. “A maioria da Corte seguiu uma decisão prévia de um caso sobre aborto no Texas, o qual levantou a mesma questão sobre se a exigência de admitir privilégios em hospital próximo constitui ônus indevido no direito de abortar antes da viabilidade do feto”, comentou.
De acordo com Baier, Trump manifestou forte discordância em relação à jurisprudência sobre o aborto. “O presidente considera a opinião do juiz Roberts completamente errada! De fato, a opinião da Suprema Corte é uma derrota contundente para Trump e os seus seguidores”, admitiu. O estudioso explica que a histórica decisão de 1973 no caso Roe V. Wade, que consagrou o direito ao aborto, impede a criminalização da interrupção da gravidez. “A decisão sobre a viabilidade (do aborto) não pertence ao Estado, mas à mulher, na consulta com o seu médico”, disse Baier.
Visões opostas
Os defensores da lei de Louisiana interpretam-na como uma medida que busca assegurar “a continuidade do atendimento” à paciente. O grupo conservador Alliance Defending Freedom destacou à agência France-Presse que a decisão foi tomada por uma margem estreita. “Nosso trabalho de priorizar a saúde das mulheres e sua segurança acima dos interesses econômicos das clínicas de aborto continuará nas esferas federal, estadual e local”, prometeu a chefe da equipe jurídica da organização, Kristen Waggoner.
Por e-mail, Elizabeth Nasch — subdiretora para Políticas de Estado do Instituto Guttmacher (organização de pesquisa e política defensora dos direitos e da saúde reprodutiva, sediada em Washington) — disse ao Correio que “não há ilusões em relação a um futuro seguro do direito ao aborto” nos EUA. “Temos visto uma campanha coordenada, de décadas, que usa qualquer pretexto para tentar restringir o aborto legal. O governo Trump deixou claro, desde o primeiro dia, que é contrário aos direitos reprodutivos — do aborto à contracepção. A Suprema Corte decidiu contra uma das muitas restrições aprovadas pelos formuladores de políticas anti-aborto. Ela manteve as proteções nacionais para o aborto”, afirmou. Nasch espera que mais estados adotem restrições, e outros busquem proteger o acesso à medida.
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Agenda contestada
O inferno astral de Donald Trump lhe rendeu mais um revés, a pouco menos de quatro meses das eleições. Em duas semanas, a Suprema Corte impôs ao presidente norte-americano a terceira derrota em temas considerados cruciais para a agenda conservadora. A máxima instância do Judiciário dos Estados Unidos manteve o entendimento sobre a lei federal que protege homossexuais e transexuais no ambiente de trabalho e impede a demissão motivada por preconceito.
Em 18 de junho, a Suprema Corte dos EUA rejeitou a revogação do programa Daca, que impossibilita a deportação de 650 mil “dreamers”, como são chamados os filhos de imigrantes ilegais que chegaram aos Estados Unidos ainda quando crianças. Na ocasião, Trump prometeu reforçar o conservadorismo da Corte com a nomeação de juízes mais alinhados com a ideologia da Casa Branca. As recentes decisões agravaram o conflito entre Executivo e Judiciário, entre a ultradireita e os guardiões da lei. (RC)