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Covid-19 com AVC

A ocorrência de acidente vascular cerebral é a complicação neurológica mais comum em pacientes infectados pelo Sars-CoV-2, mostra estudo britânico

 

A covid-19 chegou a ser considerada uma doença respiratória. Com o tempo, foram surgindo indícios de ocorrência de uma série de complicações em outros órgãos do corpo, principalmente no cérebro. Em um estudo feito com 126 pacientes infectados pelo novo coronavírus, cientistas do Reino Unido mostram o problema neurológico mais comum: o acidente vascular cerebral (AVC). O trabalho foi publicado na última edição da revista The Lancet Psychiatry.
Para chegar ao resultado, os pesquisadores criaram uma rede on-line em que médicos reportaram detalhes sobre casos clínicos envolvendo complicações cerebrais e a covid-19. As plataformas foram acessadas por especialistas em neurologia, em terapia intensiva e psiquiatras entre 2 e 26 de abril, durante a fase exponencial da pandemia no Reino Unido. “Há crescentes relatos de uma associação entre essa infecção e possíveis complicações neurológicas ou psiquiátricas, mas, até agora, essas pesquisas estavam limitadas a estudos de 10 pacientes ou menos”, afirma, em comunicado, Benedict Michael, pesquisador da Universidade de Liverpool.
Segundo o principal autor do estudo, essa é a primeira investigação nacional a abordar complicações neurológicas associadas à covid-19. “Mas é importante observar que ela se concentra em casos suficientemente graves para exigir hospitalização”, enfatiza Benedict Michael. A equipe analisou 126 infectados, que foram submetidos a uma série de procedimentos de imagem, como raios X e tomografia computadorizada.
Os exames mostraram que 77 dos 125 pacientes (61%) sofreram AVC. Em 57, houve formação de um coágulo sanguíneo no cérebro, conhecido como derrame isquêmico, nove tiveram um derrame causado por hemorragia cerebral e um paciente, derrame causado por inflamação nos vasos sanguíneos cerebrais. “Esses dados representam um retrato atual e importante das complicações relacionadas ao cérebro de pacientes hospitalizados com covid-19. É extremamente necessário que continuemos a coletá-los”, defende Sarah Pett, coautora do estudo e pesquisadora da University College London.
A cientista enfatiza ainda que a coleta de informações precisa ser ampliada. “Também precisamos entender complicações cerebrais em pessoas da comunidade que têm covid-19, mas que não estão doentes o suficiente para serem hospitalizadas. O nosso estudo fornece as bases para trabalhos maiores que (….) ajudarão a informar sobre a frequência dessas complicações cerebrais, sobre quem está em maior risco e, finalmente, sobre qual a melhor forma de tratar essas pessoas”, defende.

Coagulopatia

Cláudio Carneiro, coordenador de Neurologia do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e membro titular da Sociedade Brasileira de Neurologia (SBN), destaca que o estudo britânico mostra dados que entram em concordância com o que já se sabe sobre os efeitos da covid-19.  “As análises iniciais de pacientes mostraram que essa enfermidade causa a coagulopatia. O sangue vai coagulando, e isso faz com que apareçam pequenos trombos que contribuem para a ocorrência do AVC isquêmico e do derrame”, detalha. O médico acredita ser possível que mais estudos surjam, inclusive no Brasil, com resultados semelhantes. “É algo que temos visto aos poucos. Começou nos pacientes chineses, temos, agora, esse estudo dos ingleses, que acabaram de enfrentar o pico da doença. Todos mostram essas complicações como as mais comuns, o que pode também se repetir aqui”, justifica.
Segundo Eli Faria Evaristo, neurologista do Hospital Sírio-libanês, em São Paulo, muito ainda precisa ser estudado para se entender os efeitos neurais gerados pelo vírus, principalmente quando as complicações surgem em situações menos esperadas. “Com a chegada da doença nos Estados Unidos, pesquisadores perceberam o aumento dos casos de AVC em indivíduos mais jovens, algo totalmente inesperado e que não temos ainda uma explicação completa”, diz. “Acredito que, com mais pesquisas, vamos entender melhor os sintomas em pacientes mais graves e outros também relacionados à área neural, como a perda de olfato.”

Alteração mental

Os pesquisadores britânicos também observaram que 39 pacientes apresentaram sinais de confusão ou mudanças no comportamento, indicando possíveis alterações no estado mental. Dessas pessoas, nove foram acometidas por disfunção cerebral não especificada, conhecida como encefalopatia, e sete, por encefalite (inflamação no cérebro).
Segundo Eli Evaristo, existem várias razões para que um paciente sofra com encefalopatia. “Pode ser devido à oxigenação ruim no pulmão, a um funcionamento piorado do rim e a alterações cerebrais”, lista o neurologista. “Vemos muitos pacientes com covid-19 apresentando esses problemas, o que atrapalha até a internação, já que eles costumam ficar agitados.  Apenas com mais estudos saberemos quais os mecanismos o vírus altera para que esses fenômenos aconteçam.”

 

Palavra de especialista

Risco pode ser
potencializado

“Estudos como esse ainda não trazem dados científicos mais robustos, por serem apenas observacionais. Mas, aos poucos, podemos entender melhor os impactos desse vírus no cérebro. Temos também que considerar o fato de muitos desses pacientes serem mais velhos, o que justificaria problemas como o AVC, pois essas pessoas já têm um risco maior de manifestarem esse tipo de problema de saúde. Sendo assim, a covid-19 contribui ainda mais para que esses casos ocorram. Apenas com o tempo vamos ter certeza da relação dessas enfermidades com a infecção, mas acredito que isso não vai demorar. Temos apenas seis meses de contato com essa enfermidade e já sabemos muito sobre ela, algo que anos atrás era inimaginável.”

Amauri Araújo Godinho, médico neurologista e membro titular da Sociedade Brasileira de
Neurologia (SBN)