A covid-19 é uma doença nova, cheia de mistérios que, aos poucos, vão sendo desvendados pela ciência. Já se sabe, por exemplo, que um dos órgãos mais prejudicados é o pulmão. Por isso, há investigações em curso sobre a influência do tabagismo no agravamento da doença. Especialistas também alertam para o risco de aumento do consumo do tabaco em função do isolamento, que pode gerar ansiedade e sentimento de solidão, entre outros impactos psicológicos.
Nos estudos sobre como o Sars-CoV-2 consegue entrar e se replicar no organismo humano, foi identificado que a enzima ACE2 é usada pelo vírus para invadir as células. Os pulmões atuam como um dos principais locais de produção dessa proteína, o que reforça as suspeitas de que fumantes poderiam ser afetados de forma distinta pelo novo coronavírus. Para esclarecer a questão, cientistas norte-americanos iniciaram o estudo comparando a expressão da ACE2 no tecido pulmonar de pessoas que fumavam regularmente com a em indivíduos que nunca fumaram.
A equipe observou que os fumantes produziam de 30% a 55% mais ACE2, sendo que aqueles que fumavam havia mais tempo apresentavam os maiores valores da enzima. “Como suspeitávamos, o tabagismo causou um aumento significativo na expressão da ACE2”, frisa Jason Sheltzer, geneticista do câncer no Laboratório de Cold Spring Harbor, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo.
A equipe também suspeitava de que os efeitos do tabagismo sobre a ACE2 poderiam estar ligados às células caliciformes, o que pode estar ligado a uma maior vulnerabilidade ao coronavírus. Em testes, descobriu-se que a enzima é mais expressa pelas calciformes. “Essas células produzem muco para proteger o trato respiratório dos irritantes inalados. Assim, o aumento da expressão da ACE2 nos pulmões dos fumantes pode ser um subproduto desse fenômeno produzido pelo fumo. Pode-se imaginar que ter mais células que expressam ACE2 facilitaria a disseminação do Sars-CoV-2 nos pulmões, mas ainda precisamos explorar mais esse tema”, explica Jason Sheltzer.
Ricardo Martins, pneumologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB), explica que o estudo americano, assim como outras pesquisas feitas durante a pandemia, traz dados que reforçam a ocorrência de prejuízos maiores para fumantes em relação à covid-19. “Sabemos que o cigarro danifica a mucosa respiratória, tornando mais propício que agentes infecciosos tenham uma entrada facilitada, como o Sars-CoV-2”, explica. “Com essas pesquisas correlacionando o aumento de ACE2 nos fumantes e o papel dessa enzima na infecção por covid-19, as nossas certezas só aumentam. É muito provável que os fumantes estejam mais suscetíveis a essa enfermidade.”
Pneumonia
Estudos também têm mostrado que o tabagismo está ligado ao aumento de complicações em pacientes com covid-19. Um grupo de cientistas liderado por Wei Liu, da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, na China, analisou 78 infectados pelo Sars-CoV-2 e descobriu que os que tinham o hábito de fumar apresentavam risco 14% maior de desenvolver pneumonia, um dos agravamentos mais frequentes na infecção pelo novo coronavírus. “Acreditamos que esses dados podem estar relacionados a um comprometimento do sistema pulmonar” destacaram os autores do estudo, publicado, em fevereiro, na revista Chinese Medical Journal. O alerta também foi feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Há ainda a suspeita de que os riscos sejam maiores também em indivíduos que fumam cigarros eletrônicos. “Sabemos também que (esses dispositivos) geralmente são vistos como menos maléfico, mas eles provocam os mesmos danos na mucosa. Outro problema é que muitas pessoas compartilham esses cigarros, outro fator que facilita a transmissão do vírus”, enfatiza Ricardo Martins.
Irma de Godoy, pneumologista e presidente eleita da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (gestão 2021-2022), destaca que qualquer tipo de fumo é prejudicial aos pulmões, incluindo também o narguilé. “Todos eles repetem o gesto de colocar a mão na boca, o que também é muito perigoso. Diante da pandemia da covid-19, as chances de contaminação aumentam consideravelmente”, complementa. A médica ressalta que os danos provocados aos pulmões pelo fumo não são permanentes, o que é uma boa notícia para quem pretende lutar contra a dependência. “Não só a saúde do pulmão é recuperada, condição que ajuda a enfrentar enfermidades como a covid-19. Outra série de benefícios ocorre. A pessoa consegue respirar melhor, adquire mais resistência física e reduz o risco de sofrer com outros problemas, como os cardíacos”, lista.
Doenças crônicas
Em abril, a OMS informou que, após analisar uma série de estudos sobre a covid-19 com pacientes fumantes e não fumantes, chegou à conclusão de que os primeiros têm riscos maiores de sofrerem complicações no tratamento da infecção pelo Sars-CoV-2. “O tabaco é um grande fator de risco para doenças cardiovasculares, câncer, doenças respiratórias e diabetes, que colocam as pessoas nessas condições em maior risco de desenvolverem doenças graves quando são afetadas pela covid-19”, destacaram, em comunicado, as autoridades do órgão internacional.
"O cigarro acaba afetando áreas cerebrais relacionadas ao prazer. Isso nos faz imaginar que uma pessoa que esteja solitária busque, no tabaco, essa sensação não proporcionada pelo contato social”
João Armando, psiquiatra especialista em dependência química do Instituto Castro e Santos (ICS), em Brasília
O isolamento potencializa
Cientistas também buscam entender melhor o comportamento dos fumantes, na tentativa de conseguir ajudá-los no combate ao vício. Já se sabe que um dos fatores que podem contribuir no uso da substância é o sentimento de solidão. Por isso, pesquisadores ingleses decidiram analisar os efeitos das regras de distanciamento social em função da pandemia sobre a saúde psicológica e os hábitos de tabagistas.
Inicialmente, a equipe, analisou um banco de dados sobre hábitos de milhares de pessoas do Reino Unido e constatou a relação entre solidão e maior probabilidade de fumar. Depois, usando dados de um rastreador comportamental — a plataforma chamada YouGov reúne informações sobres hábitos dos ingleses durante o isolamento —, percebeu que 2,2 milhões de pessoas estão fumando mais.“De repente, todo o Reino Unido tornou-se mais socialmente isolado do que nunca, e, para muitas pessoas, isso, provavelmente, aumentará a solidão”, diz Robyn Wootton, pesquisadora da Universidade de Bristol e uma das autoras do estudo, publicado na plataforma on-line MedRixv.
João Armando, psiquiatra especialista em dependência química do Instituto Castro e Santos (ICS), em Brasília, destaca que o papel da solidão como um influenciador no hábito de fumar é algo suspeito por especialistas da área. “Assim como o álcool, o cigarro acaba afetando áreas cerebrais relacionadas ao prazer. Isso nos faz imaginar que uma pessoa que esteja solitária busque, no tabaco, essa sensação não proporcionada pelo contato social”, explica.
O especialista acredita que essa relação ganhe ainda mais força diante do momento atual. “As pessoas estão confinadas, o que pode influenciar o consumo do cigarro. Temos muitos casos de fumantes que só acendem um cigarro depois do almoço e, durante o dia, não sentem falta porque estão no trabalho, não podem descer a escada do prédio para fumar, por exemplo. Em casa, você não tem essas barreiras, por mais que esteja trabalhando”, ilustra.
Douglas Sakamiti, de 33 anos, tem sentido mudanças no consumo do cigarro nos últimos meses. “Logo no início do isolamento, no primeiro mês, percebi que estava fumando mais. Ficar em casa me mostrou as consequências desse aumento, como os ambientes ficando com muito cheiro de cigarro.” Antes da pandemia, ele trabalhava em um escritório e havia limitação de locais para fumar. Em home office, as dificuldades reduziram. “Há mais liberdade”, compara. “Isso sem contar a ansiedade por tudo o que está acontecendo no mundo, o estresse da restrição de não sair de casa e vários outros fatores.”
O administrador de empresas explica que, além dos riscos à saúde, outros medos gerados pela pandemia têm potencializado sua ansiedade. “Com essa reviravolta econômica, as empresas estão se reinventando, ou seja, há também um movimento de mais responsabilidades no trabalho. Tudo isso faz com que aumente o número de cigarros, ainda mais por não haver outra válvula de escape, como viagens, ver os amigos, ir ao bar”, diz. Apesar das dificuldades sofridas atualmente, Douglas pretende dar fim ao vício, mesmo que seja aos poucos. “Comecei um processo de diminuir. Por isso, penso em parar de fumar, mas não no curto prazo.” (VS)