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Criado embrião humano que se desenvolve sozinho

Organismo originado de células-tronco reproduz, em laboratório, estágios iniciais do desenvolvimento fetal, como as primeiras fases da formação de músculos e ossos. Segundo cientistas, a estrutura ajudará no avanço de pesquisas sobre malformações congênitas



Um grupo internacional de cientistas desenvolveu um modelo de embrião feito a partir de células-tronco humanas. Em laboratório, a estrutura foi capaz de reproduzir os estágios iniciais de seu desenvolvimento, um avanço que poderá ser útil para estudos de malformações congênitas e de outras anormalidades que ocorrem durante o crescimento fetal, segundo os criadores. Os resultados do trabalho foram apresentados na última edição da revista britânica Nature.

É a primeira vez que células-tronco humanas são usadas para criar o modelo tridimensional de um embrião humano. Anteriormente, foram usados apenas protótipos de camundongos e peixes-zebra (Leia Para saber mais). “Essa réplica é o primeiro passo para modelização do corpo humano”, enfatizou, em comunicado, Naomi Moris, pesquisadora do Departamento de Genética da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e coautora de estudo.

Para criar o modelo, cientistas britânicos, que contaram com a participação de pesquisadores do Instituto Hubrecht, na Holanda, usaram um método que utiliza células-tronco embrionárias humanas na criação de um conjunto tridimensional de células gastruloides, estruturas que se diferenciam em três camadas organizadas. Esse processo, chamado gastrulação, ocorre no início do desenvolvimento fetal. A partir dele, as três camadas de células vão formando diferentes tipos de tecidos. Nessa fase, considerada a “caixa-preta” do desenvolvimento fetal humano, podem ocorrer várias anomalias congênitas devido a fatores como consumo de álcool e de alguns medicamentos pelos pais, exposição a produtos químicos e infecções.

Após 72 horas de desenvolvimento do pseudoembrião, os cientistas observaram sinais evidentes dos fenômenos que levam à formação de músculos, ossos e cartilagens. Segundo a equipe, esses modelos criados em laboratório não podem se tornar embriões verdadeiros porque não têm células cerebrais ou tecidos necessários para a implantação no útero. O protótipo desenvolvido assemelha-se, em parte, a um embrião com 18 a 21 dias.

“Os gastruloides não têm o potencial de se transformar em um embrião totalmente formado. Eles não têm células cerebrais ou nenhum dos tecidos necessários para implantação no útero. Isso significa que nunca seriam capazes de progredir além dos estágios iniciais de desenvolvimento e, portanto, estão em conformidade com os padrões éticos atuais”, enfatizou a equipe em comunicado emitido pela Universidade de Cambridge.



Cabeça-coluna

Naomi Moris declarou à revista Nature que, para ela, a fase mais emocionante do estudo foi a formação de bolsas de células que simetricamente atravessam o eixo cabeça-coluna. Uma análise genética revelou que essas células são as responsáveis pela formação de músculos no tronco, nas vértebras, no coração e em outros órgãos humanos.

Para a pesquisadora, o modelo embrionário ajudará no entendimento do padrão de células em seu surgimento e em quando esse processo falha, o que, mais na frente, pode originar problemas como a escoliose, responsável pela curvatura da coluna vertebral. “Esse é um novo sistema que abre uma série de perguntas”, afirmou Naomi Moris.

Outras complicações também poderão ser mais bem compreendidas com o embrião artificial, como infertilidade, abortos espontâneos e problemas genéticos. “Nosso modelo produz parte do plano de um humano. É emocionante ver o processo de desenvolvimento que, até agora, não conseguíamos acompanhar passo a passo”, destacou Alfonso Martínez-Arias, autor do estudo e pesquisador do Departamento de Genética de Cambridge.

Segundo Jeremy Green, professor de biologia do desenvolvimento no King’s College London, que não participou do estudo, a pesquisa abre uma “janela fantástica” sobre a formação inicial do corpo humano. “Essa importante descoberta nos ajudará a entender os mecanismos críticos do planejamento do corpo humano”, declarou ao site da revista Nature Li Tianqing, biólogo do desenvolvimento no Instituto de Medicina Translacional Primaz em Yunnan, na China, que também trabalha em estruturas semelhantes a embriões.

Trabalho lento


Os autores destacam que eles caminharam aos poucos até chegar aos dados obtidos. Para o resultado atual, usaram a experiência acumulada nos últimos cinco anos na criação de gastruloides a partir de células-tronco embrionárias de camundongos. Nos primeiros testes da atual fase, conseguiram uma colônia com cerca de 300 a 500 células, que evoluiu rapidamente devido ao uso de um produto químico para ativar genes.

Os cientistas adiantam que deverão usar o novo modelo para criar estruturas ainda mais próximas ao desenvolvimento inicial humano e com um tempo maior de durabilidade. “Embora exibam certas características-chaves de um embrião de 21 dias, os gastruloides sobrevivem por apenas quatro dias”, justificou Moris ao site da Nature.

Fu Jianping, bioengenheiro da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, acredita que a ciência poderá, nos próximos cinco a 10 anos, adicionar a esse método outros tipos de células que possam imitar a placenta, por exemplo. Mas ele destaca que, com essa evolução, serão necessárias medidas que impeçam a formação de novos órgãos. “Temos que ter cuidado para não começarmos a gerar embriões humanos”, enfatizou à revista Nature.

  • Para saber mais

    O risco dos modelos animais

    Em pesquisas anteriores que buscaram reproduzir as primeiras etapas do desenvolvimento humano, cientistas utilizaram animais como ratos e peixes-zebra. Mas quando as células começam a se diferenciar, esses modelos podem se comportar de maneira diferente dos embriões humanos. Dessa forma, os resultados de experimentos científicos não podem ser considerados 100% confiáveis, muito menos os possíveis desdobramentos.

    Os pesquisadores britânicos citam como exemplo o caso do medicamento talidomida. Após ser testado em ratos, o remédio obteve autorização para ser utilizado contra dores de cabeça, insônia e enjoos, sendo prescrito principalmente para gestantes. No final dos anos de 1960, começaram a surgir as primeiras constatações de que a droga era responsável por diversos casos de malformação gênica de fetos.