Duas semanas depois de ser morto pelo policial branco Derek Chauvin, que pressionou-lhe o pescoço com o joelho por 8 minutos e 46 segundos, em Minneapolis, o cidadão afro-americano George Floyd foi sepultado, ontem, no cemitério Houston Memorial Gardens, em um jazigo ao lado do corpo da mãe. Antes, a última cerimônia fúnebre atraiu milhares de moradores de Houston, cidade do Texas onde George cresceu. O velório, na Igreja Fonte de Louvor, se transformou em um ato político e de resistência contra o racismo. Em um símbolo de paz, todos os familiares de Floyd vestiam branco. Como medida de prevenção contra a pandemia do novo coronavírus, apenas 500 pessoas puderam acompanhar as exéquias dentro da igreja.
Joe Biden, candidato democrata à Casa Branca, gravou um discurso transmitido em um telão do templo. “Nenhuma criança deveria perguntar aquilo que tantas crianças negras tiveram que se perguntar por gerações: ‘Por que, por que papai se foi?’ (…) Agora é hora de justiça racial. Essa é a resposta que devemos dar aos nossos filhos quando eles nos perguntam o porquê. Porque, quando houver justiça para George Floyd, estaremos realmente no caminho da justiça racial na América”, declarou. “Não podemos sair deste momento pensando que podemos, mais uma vez, nos afastar do racismo que fere a nossa alma.” O ex-presidente Barack Obama retuitou o vídeo do ex-vice, atingindo quase 120 milhões de seguidores.
O reverendo e ativista dos direitos civis Al Sharpton voltou a ser o centro das atenções e também exigiu justiça. “Vidas como a de George (Floyd) não terão importância até que alguém pague o preço por tê-las tirado”, afirmou. Ele propôs uma reflexão: “Se quatro policiais negros tivessem feito a um branco o que foi feito a George, (…) eles os mandariam para a cadeia”. Al Sharpton ressaltou que o incidente em Minneapolis “não foi apenas uma tragédia”. “Foi um crime. Esta família suportou isso”, disse.
O ativista criticou a falta de empatia do presidente Donald Trump. “Quando alguns garotos iniciam indevidamente a violência que essa família não tolera, o presidente fala em trazer o Exército. Mas ele não disse uma só palavra sobre os 8 minutos e 46 segundos do assassinato policial de George Floyd.” A morte do afro-americano desencadeou os maiores protestos ocorridos nos Estados Unidos em 52 anos. Brooke Williams, sobrinha de Floyd, pediu mudança na legislação que combate os crimes de ódio. “Por que o sistema deve ser corrupto e falido? Leis criadas para o sistema afro-americano com a intenção de fracassarem. Não mais crimes de ódio, por favor!”, afirmou, sem conter as lágrimas.
“Reação atrasada”
O socorrista Mallory Jackson (leia Depoimentos), 44 anos, conhecia George Floyd desde os 11. Ontem, ele foi até a Igreja Fonte de Louvor para se despedir do amigo. “A morte de Floyd acendeu o fogo necessário para fazer com que esse governo se submeta a uma verificação e monitore os departamentos de polícia. Também realize uma grande reforma e se livre de oficiais corruptos”, afirmou ao Correio. “Não estamos na década de 1950. Você não pode assassinar um homem em plena luz do dia! Foi realmente incrível o fato de os protestos antirracismo terem se espalhado pelos EUA. Foi uma reação muito atrasada, porém, bastante necessária”, acrescentou.
Ele disse esperar que o mundo passe a respeitar as vidas dos negros e entenda que todas as vidas importam. “A vida de um animal não deveria ter mais valor do que a de um homem negro ou de qualquer outro homem”, desabafou. Mallory contou ter ficado impressionado, porém, não surpreso, com a mobilização em Houston nas homenagens a Floyd. “O modo com que os moradores da cidade e pessoas de longe vieram e formaram filas pelas ruas para dizerem ‘adeus’ foi inacreditável.”
Diretor do câmpus do Houston Community College e cientista político, Donnell Cooper, 44, também mantinha sólida amizade com Floyd desde 1993. Para ele, a morte do amigo e colega de escola foi um “crime de ódio desinteressado, que os EUA jamais esquecerão”. “O meu país está cansado. Crimes assim ocorreram tantas vezes ao longo da história. Nós exigimos justiça”, disse ao Correio. “Eu sinto que esse movimento permitirá à história mudar todo o mundo. George tem um apelo indocumentado sobre a própria vida. Aos 46 anos, todos os norte-americanos conhecerão o nome George Floyd”, aposta. Um caso da covid-19 em sua família impediu-o de participar dos funerais. Cooper acompanhou tudo pela tevê. “O que mais me impressionou foi que todos os olhos dos EUA se detiveram para celebrar a vida de George.”
O assassinato flagrado por câmeras e as manifestações que se espalharam pelos Estados Unidos levaram a Câmara dos Representantes a apresentar um projeto de lei para punir crimes policiais. “Reformas assim devem surtir impacto positivo sobre o estado da polícia e podem reduzir casos de abusos. Poucos estudos avaliaram o impacto das leis de transparência policial nos resultados sociais. Mas, creio que essas reformas, atreladas a transformações locais, levarão a melhorias”, admitiu ao Correio Jack Mewhirter, professor de ciência política da Universidade de Cincinnati (Ohio).
Depoimentos
“O meu amigo mudou o mundo”
“Floyd era meu amigo!!! Ele foi um ótimo irmão, colega e companheiro de time, além de ótima pessoa. Ele nada queria a não ser o amor e o melhor para aqueles ao seu redor!!! Ele não era perfeito, mas aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra!!! Nós nos conhecíamos desde 1987. Fomos colegas no ensino médio, na escola James D. Ryan, e também nos formamos, em 1993, na Jack Yates High School. Por termos crescido juntos, na comunidade de Third Ward, vimos muito racismo de parte da polícia e mesmo de alguns empresários da cidade.
Para mim, foi algo emotivo acompanhar o funeral, hoje (ontem), aqui em Houston. Era meu amigo que estava ali para todo o mundo ver. Porque ele mudou o mundo!!! E isso é algo grande!!! Cada homem deseja deixar um rico legado e sua marca no mundo!!! George fez isso!!!” Mallory Jackson, 44 anos, socorrista, morador de Houston e amigo de George Floyd.
“Nós celebramos o seu legado”
“George era um grande homem e um pilar em nossa comunidade de Third Ward, aqui em Houston. Minhas memórias de George Floyd remontam ao início da década de 1990. Nós estudamos na mesma escola, a Jack Yates High School. George era da turma de 1993; eu pertencia à turma do ano seguinte. Nós jogávamos basquete juntos. No entanto, George sempre foi conhecido como o maior ‘tight end’ (posição de ataque, misto de recebedor e bloqueador) da equipe de futebol americano do campeonato estadual.
Ele sempre compartilhou com gerações mais jovens que seguiam seus passos sobre a importância de você caminhar pelo bem e tentar o seu melhor, para viver a vida ao máximo. George não era perfeito, mas nenhum homem o é. Agora, nós celebramos sua vida e seu legado. Nenhum homem jamais foi capaz de reunir todos os 50 estados norte-americanos e 18 países ao mesmo tempo.” Donnell Cooper, 44 anos, é diretor do câmpus do Houston Community College, professor de governo e amigo de George Floyd.