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A ordem é reprimir

Trump anuncia envio de "milhares de soldados fortemente armados" a Washington, exige que governadores acionem a Guarda Nacional contra manifestantes e classifica protestos antirraciais de "terrorismo doméstico"







Nos jardins da Casa Branca, por volta das 18h45 (19h45 em Brasília), o presidente Donald Trump fez um pronunciamento marcado pela tensão, pela ameaça e pela confrontação com os governadores. O magnata republicano classificou os atos de vandalismo durante os protestos antirraciais como “terrorismo doméstico”; avisou que enviará milhares de soldados “totalmente armados” para Washington; deu um ultimato aos Estados para usarem a Guarda Nacional contra os distúrbios; e defendeu a Segunda Emenda da Constituição — o direito do cidadão de portar armas. “Eu sou o seu presidente da lei e da ordem”, anunciou.

Enquanto Trump discursava, do outro lado dos portões, na Praça Lafayette, bombas de gás lacrimogêneo explodiam entre manifestantes, na sétima noite consecutiva de protestos contra o assassinato de George Floyd, homem negro vítima de policiais brancos, em Minneapolis, no último dia 25.

“Nosso país foi tomado por anarquistas. Governos locais não tiveram sucesso com suas ações”, declarou Trump, que fez uma forte condenação dos distúrbios na capital e em várias cidades. “Estes não são atos de protestos pacíficos, são atos de terrorismo doméstico, com o derramamento de sangue inocente. É uma ofensa contra a humanidade e contra Deus”, comentou, em alusão aos maiores protestos a atingirem o país desde a morte do líder ativista Martin Luther King, em 1968. “Estou enviando milhares e milhares de soldados fortemente armados, pessoal militar e agentes das forças de ordem para acabar com o vandalismo, os furtos e os saques.”

Em um gesto simbólico, o presidente deixou a Casa Branca a pé, anunciou que iria a um “local muito especial”, atravessou a Praça Lafayette e percorreu cerca de 200m até a Igreja Episcopal de São João. “Temos um grande país”, disse, no local, ao segurar a Bíblia. O templo religioso, chamado de “igreja dos presidentes”, foi alvo de um incêndio na noite anterior.

Em conversa com governadores estaduais, na manhã de ontem, ele cobrou a adoção de táticas agressivas para restaurar a ordem. “Vocês têm de dominar (os protestos) ou parecerão um bando de idiotas. Precisam prender e julgar pessoas”, exigiu, em telefonema feito a partir da Sala de Situação, nos porões da Casa Branca, onde se refugiou na noite de domingo. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, anunciou toque de recolher na megalópole de mesmo nome entre 23h e 5h. O número de policiais nas ruas também dobrará de 4 mil para 8 mil. Ontem, a cidade registrou novos protestos. Por sua vez, o governador de Illinois, J. B. Pritzker, rejeitou a mobilização de tropas no estado.





Divisão
Professor de direito penal da Universidade de Pittsburgh e autor de Good cops: The case for preventive policing (“Bons tiras: o caso do policiamento preventivo”), David Harris afirmou ao Correio que as mais recentes declarações de Trump “apenas dividirão as pessoas e inflamarão a situação”. “Elas podem causar mais danos e, talvez, perda de vidas”. “Ele deveria falar sobre como podemos obter justiça para todos e como proteger nossos cidadãos e nossos direitos. Em vez disso, está ameaçando as pessoas”, lamentou. O especialista não acredita que a referência de Trump à Segunda Emenda seja um passe livre para o uso de armas contra manifestantes. “Não vejo perigo ou envolvimento do direito de ter armas O presidente está tentando enviar uma mensagem aos apoiadores de que podem ter a lei em suas próprias mãos”, explicou.

Harris vê em Trump um líder com insegurança e com incapacidade de pensar em qualquer coisa exceto a repressão. “O uso da força desproporcional para deter um homem suspeito de dar uma nota falsa de US$ 20 é o pior tipo de dominação policial. Foi ela que nos trouxe até esse ponto.”

Para Matthew Clair, professor de sociologia da Universidade de Stanford, o apelo de Trump para a “dominação” dos manifestantes é “imprudente e moralmente falido”. “As comunidades negras — e muitas outras comunidades marginalizadas no país — são vítimas do cinismo da polícia justamente por causa da própria violência sancionada e incitada pelo Estado”, lembrou à reportagem. Ele definiu o racismo e a falta de vontade em firmar um compromisso nacional sustentável para corrigir injustiças do racismo como raízes da tensão racial no país.


"O que aconteceu na cidade, ontem à noite (domingo), é uma desonra absoluta. Estou enviando milhares e milhares de soldados fortemente armados, pessoal militar e agentes das forças de ordem”

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos





Pontos de vista

Por David Harris

Contra a indiferença pela vida humana


“São os maiores protestos desde 1968. Naquele ano, manifestações e distúrbios eclodiram em todo o país, em reação à morte de Martin Luther King. O levante dos últimos dias é um atestado de que as pessoas estão horrorizadas com a violência policial e a indiferença à vida humana.”

Professor de direito penal da Universidade de Pittsburgh e autor de Good cops: The case for preventive policing (“Bons tiras: o caso do policiamento preventivo”)



Por Clayborne Carson

Mais combustível sobre as chamas


“Eu apoio fortemente os protestos contra a longa história de brutalidade da polícia contra os negros americanos. Também condeno a declaração de Trump que lança combustível sobre o fogo que se espalha por todo o país. Sem justiça não pode haver paz duradoura.”

Fundador do Instituto Martin Luther King Jr., da Universidade de Stanford (Califórnia), e guardião dos documentos do líder ativista de direitos civis



Por Matthew Clair

Presença na sociedade


“O racismo tem longa história e presença na sociedade norte-americana. Os atuais protestos antirraciais refletem a falta de compromisso sustentado para transformar nossas instituções em meios que confrontem o racismo e a desigualdade social.”

Professor assistente de sociologia da Universidade de Stanford e autor de Privilege and punishment: How race and class matter in criminal Court (“Privilégio e punição: Como a raça e a classe social importam na Corte penal”)





Morte por asfixia
Uma autópsia independente, encomendada pela família e assinada por dois médicos-legistas, concluiu que a causa da morte de George Floyd (foto), em 25 de maio, foi asfixia provocada pela compressão do pescoço e das costas, o que levou à falta de circulação sanguínea no cérebro. Segundo o laudo, a  pressão contínua sobre o lado direito da artéria carótida impediu o sangue de chegar ao cérebro, e o peso sobre as costas dele o incapacitou de respirar. Uma necropsia preliminar, feita pelo legista do condado de Hennepin, não tinha indicado “achados físicos” para apoiar um diagnóstico de asfixia traumática ou estrangulamento.




De Blasio defende filha
O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, reagiu, ontem, à prisão da filha Chiara (foto) durante um protesto. “Minha filha tem um profundo respeito pela humanidade, pelo protesto pacífico e pelo desejo de mudar o nosso mundo para melhor. Eu a amo, a respeito e a admiro”, afirmou. Em vídeo divulgado no Twitter, o político contou que Chiara, 25 anos, não informou os pais sobre a intenção de ser presa. “Eu conheço algumas de suas visões, sei que ela acreditava em protestos pacíficos. (...) Quando soube que ela tinha sido presa, pedi que me contasse toda a história”, disse. “Ela crê que tudo o que fez era no espírito do protesto pacífico.”

Obama prevê mudanças
Em uma série de tuítes, o ex-presidente Barack Obama voltou a comentar a revolta antirracial. “À medida que milhões de pessoas em todo o país tomam as ruas e levantam suas vozes em resposta ao assassinato de George Floyd e ao problema contínuo da justiça desigual, muitos perguntaram-me sobre como podemos sustentar o momento para trazer uma mudança real”, escreveu. De acordo com ele, os protestos representam uma genuína frustração em relação a décadas de fracasso em reformar práticas policiais e ampliar o sistema de Justiça penal.

China vê racismo “crônico”
A China criticou a “doença crônica” do racismo nos EUA. Os incidentes em várias cidades americanas são o sinal da “gravidade do problema do racismo e da violência policial nos Estados Unidos”, disse o porta-voz do ministério chinês das Relações Exteriores, Zhao Lijian. Ele fez uma comparação com a violência que sacudiu no ano passado Hong Kong. Para Zhao, a resposta dos EUA às manifestações contra a violência policial em seu território é “um exemplo clássico de seus duplos padrões mundialmente famosos”.