Mundo

Lenha na fogueira

 

Enquanto os Estados Unidos amargam 1,4 milhão de casos do novo coronavírus (quase um terço dos infectados no planeta) e 87,4 mil mortes (ontem, foram 1.680), o presidente Donald Trump tornou a atacar a China. Ao anunciar  os planos para desenvolver uma vacina contra a covid-19 até o fim do ano, ou, “quem sabe, antes”, o republicano responsabilizou Pequim pela pandemia. “Isso nunca deveria ter ocorrido. Isso veio da China. Ele (vírus) deveria ter sido parado na China, antes que saísse para o mundo. Temos 186 países afetados”, declarou. Trump insistiu em provocar os chineses. “É uma coisa terrível o que aconteceu. Deveria ter sido parado (o vírus) na fonte, mas não foi”, disse, ao insistir que a covid-19 precisaria ter sido enfrentada “no lugar de onde veio, a China”. “Ele (o novo coronavírus) poderia ter sido detido facilmente, com rapidez. Por algum motivo, (os chineses) foram incapazes de fazê-lo.”

 

A nova rodada de acusações ocorreu um dia depois de Trump ameaçar romper as relações bilaterais com a China e não conversar mais com o presidente chinês, Xi Jinping. “Há muitas coisas que poderíamos fazer. Poderíamos fazer coisas. Poderíamos cortar todos os relacionamentos”, disse, anteontem. Na quarta-feira, o FBI (polícia federal norte-americana) advertiu que hackers, pesquisadores e estudantes apoiados por Pequim estariam buscando capturar informações científicas sobre a covid-19 e pesquisas sobre vacinas. As relações entre China e Estados Unidos têm se deteriorado desde o começo da pandemia de covid-19. Os EUA suspeitam que o novo coronavírus surgiu em um laboratório que manipula patógenos perigosos no Instituto de Virologia de Wuhan, na metrópole de mesmo nome localizada na província de Hubei, região central da China.

 

Ao ser questionado sobre os números de infectados (82.993) e de mortos (4.633) na China, Trump desconversou. “Eu não sei. Eu ficaria muito feliz se os números fossem mais baixos. Eu gostaria de não ver mortes. Uma morte é muito”, comentou. Apesar da retórica agressiva de Washington, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, buscou colocar panos quentes e pediu o reforço da cooperação com os Estados Unidos no combate à pandemia. “Manter relações estáveis entre a China e os Estados Unidos é do interesse fundamental dos dois povos e da paz e da estabilidade no mundo”, afirmou à imprensa.

 

Scott Kennedy, conselheiro-sênior do think tank Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, em Washington), admitiu ao Correio que as relações sino-americanas estão “em queda livre”. “A pandemia acelerou a deterioração do relacionamento, particularmente entre o governo Trump e Pequim. A pandemia também está sendo politizada nos dois países”, explicou. Para o especialista, a comunidade de inteligência dos EUA não tem qualquer evidência clara de que a China inventou o vírus, de que o laboratório intencionalmente liberou o vírus ou de que o gerenciou de modo ruim. “A maioria das pistas aponta na direção do mercado de rua de Wuhan. Haverá necessidade de uma investigação completa e independente, e isso exigira a cooperação chinesa. Mas isso não ocorrerá por meio da emissão de um veredicto”, advertiu.

Vacinas

 

Em evento na Casa Branca, no qual apareceu sem máscara, Trump anunciou que espera bons resultados “muito em breve” em relação às pesquisas sobre vacinas. “Não quero que as pessoas pensem que tudo depende de uma vacina, mas isso seria formidável”, afirmou, ao reiterar que a economia do país está reabrindo de qualquer maneira, referindo-se à contínua falta de controle em várias regiões. “Criamos a melhor economia da história do mundo e vamos fazer isso novamente.”

 

Por e-mail, o australiano Peter C. Doherty (leia Duas perguntas para), professor do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Melbourne e laureado com o Prêmio Nobel de Medicina de 1996, lembrou ao Correio que, quanto mais rápido os EUA desenvolverem uma vacina, melhor. “Um número de companhias privadas aposta nisso, mas não sei o quanto de ajuda recebem do governo Trump. Espero que agências-chave federais, como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), a FDA (agência reguladora de alimentos e medicamentos) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) façam o que puderem para impulsionar o desenvolvimento da vacina. Deve haver forte motivação nessa direção por parte do Exército dos Estados Unidos.”

 

Em comunicado enviado por e-mail, William G. Kaelin Jr. —  professor da Universidade de Harvard e Nobel de Medicina em 2019 — afirmou que  formuladores de políticas públicas “precisam tomar decisões baseadas na ciência e em dados, não na conveniência e no pensamento positivo”. Ele cita que, ao longo dos anos, pessoas tinham a certeza sobre a utilidade de terapias médicas experimentais, as quais se mostraram inúteis ou prejudiciais, quando submetidas a rigorosos ensarios clínicos. “Temos que seguir a ciência e ser extremamente cautelosos ao recomendar terapias não comprovadas”, comentou. 

 

Wuhan realiza testagem em toda a população

Médicos da metrópole de Wuhan, na província de Hubei (centro da China), começaram a coletar amostras de saliva para testar os 11 milhões de habitantes em busca de portadores assintomáticos do novo coronavírus. A medida ocorre depois que a cidade registrou ao menos seis novos casos de covid-19 no último fim de semana. Wuhan foi onde surgiram as primeiras infecções, em dezembro do ano passado, entre funcionários de um mercado de rua. Entre 1º de abril e 13 de maio, quase 1,8 milhão de pessoas foram testadas. 

 

» Duas perguntas para 

De que maneira o senhor avalia a resposta do presidente Donald Trump à pandemia?

Trump parece atuar em seu habitual jogo de encorajar os governadores norte-americanos a abrirem suas economias, atendendo às demandas dos megarricos para os quais eles governam e de sua base eleitoral. Então, quando as coisas se saírem mal, ele culpará os governadores por isso e não tomará a responsabilidade para si. Trump sempre acredita que “a responsabilidade é de outra pessoa”.

 

O senhor vê um possível desastre dos EUA no gerenciamento?

Alguns dos estados se sairão bem, desde que governadores responsáveis, como os de Wisconsin, não sejam prejudicados por outras forças. Outros abrirão a economia muito cedo e se sairão mal. No fim das contas, tudo é um grande experimento e aguardaremos para ver os resultados. Basicamente, a incidência da covid-19 é um jogo de números entre a transmissão do vórus e a disponibilidade de pessoas suscetíveis, com os modificadores-chave de distanciamento social e “imunidade de rebanho”, a qual esperamos seja imensamente expandida pela vacinação. (RC)