Não chega a guerra, mas é bem fria
Há um tanto mais que as diatribes habituais de Donald Trump sobre a origem do vírus nos repetidos atritos entre Estados Unidos e China a propósito da pandemia da Covid-19. O presidente americano, de olho na disputa pelo segundo mandato, em novembro — se nada mudar pela crise sanitária —, move-se com motivações eleitorais indisfarçadas. Fala, em boa parte, com a mira apontada para o eleitorado que decidiu a seu favor importantes estados industriais, em 2016, e são outra vez castigados pela estagnação da economia. Mas em outros escalões do aparelho de Estado americano, em especial onde se traçam estratégias de mais longo alcance, as atenções estão voltadas para áreas onde será definida a liderança mundial no pós-coronavírus.
Precisamente a economia é uma delas. E, assim como no desenvolvimento da doença propriamente dita, a escalada do desemprego nos EUA, com recorde atrás de recorde nos pedidos de seguro, sugere que é a potência comunista quem responde melhor ao desafio. Com a União Europeia igualmente projetando um tombo fenomenal no PIB comunitário, é para os capitais e os mercados chineses que o resto do mundo terá de endereçar as expectativas por uma locomotiva capaz de recolocar nos trilhos o sistema econômico global.
Até pelo grau de interdependência que envolve as relações entre países no mundo do século 21, a rivalidade entre Washington e Pequim assume, ano após ano, contornos que lembram os da Guerra Fria. Assim como na segunda metade do século passado, quando EUA e União Soviética detinham em condomínio a hegemonia global, interessa a ambas as partes administrar focos de conflito. Tirar deles as vantagens geopolíticas sem deixar que escapem do controle. Mas havia guerra, em sentido estrito: no Vietnã, no Oriente Médio, na África pós-colonial, entre Índia e Paquistão.
Até aqui, China e EUA não disputam nem mesmo batalhas indiretas. Mas a temperatura da relação engatada por Richard Nixon e Mao Tsetung, no início dos anos 1970, nunca esteve tão fria.
Corações e mentes
O título copiado do clássico documentário americano sobre a Guerra do Vietnã se remete a outra esfera na qual se antecipa outra frente estratégica desse novo jogo pela hegemonia. A busca de uma vacina para a Covid-19, assim como de medicação que a remeta para o compêndio das “gripezinhas”, mobiliza a nata da ciência pelos quatro cantos do globo. Igualmente aí, cooperação e rivalidade contracenam. Enquanto os pesquisadores trocam informações e otimizam esforços para apressar resultados, governantes e estrategistas de Estado examinam no microscópio — e no telescópio — as implicações potenciais da pandemia para a microbiologia e a indústria farmacêutica.
Também nesse cenário, a memória da Guerra Fria ensina que a disputa pela liderança técnico-científica se projeta em outra direção mais, a da influência cultural e da opinião pública. JFK mostrou compreensão aguda dessa dimensão quando, recém-eleito, lançou ao país o desafio de ser pioneiro na viagem de um homem para a Lua. Desde o fim dos anos 1950, com o lançamento do Sputnik, a URSS liderava a corrida espacial. E conquistava corações com peças fulminantes como Yuri Gagarin proclamando que “a Terra é azul”.
Kennedy não viveu para testemunhar o troco, em julho de 1969, quando Neil Armstrong narrou ao vivo seu desembarque em solo lunar: “Um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”.
Aviões de carreira
O Brasil tem no noticiário doméstico um exemplo de almanaque — e um quebra-cabeça a resolver — sobre as implicações cruciais de desdobramentos imediatos da pandemia. Pressionada pela crise, a gigante americana Boeing anunciou que desiste da bilionária aquisição da Embraer, a ex-estatal do setor aeronáutico que fez história como um dos pilares do ciclo mais recente de desenvolvimento industrial do país.
Mais do que um negócio de imenso alcance econômico, a fusão desfeita representava uma tacada certeira para a geopolítica dos EUA no Hemisfério Ocidental — como a nomenclatura oficial do Departamento de Estado designa as Américas. Não apenas fica novamente em aberto o controle de uma empresa com nichos importantes no disputado mercado da aviação civil. O virtual controle da Embraer implicava igualmente uma posição priviliegiada no âmbito da defesa.
Não estranha que, mal anunciada a decisão da Boeing, e antes mesmo que a parte brasileira apresente sua contestação legal, já se insinuam os primeiros sinais de interesse pelo complexo instalado em São José dos Campos (SP). E eles vêm... da China.
Espelho meu
No terreno da política externa propriamente dita, o avanço da Covid-19 vem colocando seguidos desafios para a diplomacia brasileira. Eles começam (ou continuam) pela missão de amparar os cidadãos retidos em outros países, ajudar a repatriação e amenizar os transtornos. A atenção aos viajantes e emigrados é um problema clássico para todos os governos, mas a crise sanitária global exige esforços numa escala desconhecida para o país.
Mas é na formulação de estratégias e linhas de ação que o Itamaraty e o Planalto serão mais exigidos. Em especial, naquela que se apresentou, de saída, como a marca registrada do governo Jair Bolsonaro, com o chanceler Ernesto Araújo. Fiel ao discurso de campanha, o presidente marcou o primeiro ano de mandato, na frente externa, pelo alinhamento ostensivo com as posições e movimentos de Washington. Em particular, na confrontação com o sistema multilateral.
Na resposta ao coronavírus, Bolsonaro veio se perfilando como um espelho do discurso de Donald Trump, e não apenas no desprezo de ambos pela ameaça — um aspecto que a Casa Branca, ao menos, resignou-se a corrigir. Os dois governantes, porém, seguem na linha de contestar sistematicamente a Organização Mundial da Saúde (OMS), que o chanceler brasileiro identifica com o que chama de “ditadura globalista”.