Mundo

Proteínas surgem como frente de combate

Medicamentos podem fazer com que moléculas produzidas pelo corpo humano impeçam que o coronavírus desencadeie a ação infecciosa. Grupo internacional de cientistas identifica 47 remédios já vendidos em farmácia que têm esse efeito


Se você não pode com o inimigo, foque em você. Pode até parecer mensagem de autoajuda. Mas, na verdade, essa foi a abordagem utilizada por um grupo de mais de 120 pesquisadores norte-americanos e europeus para detectar 47 medicamentos vendidos em farmácia, sem necessidade de receita, com potencial de lutar contra o Sars-Cov-2. O desenvolvimento de novas drogas que tenham como alvo os mecanismos usados pelo novo coronavírus para entrar nas células do hospedeiro e se replicar pode demorar mais de 10 anos. Por isso, os cientistas resolveram pesquisar, nos genes humanos, quais proteínas poderiam ser estimuladas para reagir contra o causador da Covid-19.

Em uma coletiva de imprensa on-line, Nevan Krogan, biólogo molecular da Universidade da Califórnia, em San Francisco, lembrou que, diferentemente de bactérias, os vírus não conseguem viver sozinhos. Como parasitas, eles precisam usar o maquinário das células do hospedeiro para sobreviver e se replicar. “Eles precisam dos nossos genes e das nossas proteínas”, diz o principal autor do estudo, publicado na revista Nature. Por isso, em vez de buscar substâncias que bloqueiam essa habilidade no Sars-Cov-2, os cientistas buscaram nos exaustivamente conhecidos genes humanos uma forma de impedir que o micro-organismo consiga usar o hospedeiro para iniciar a cadeia infecciosa.

Krogan conta que idealizou a estratégia em janeiro, quando ficou claro para ele que o mundo estava diante de uma epidemia iminente. Em poucas semanas, o biólogo montou uma equipe com cientistas e médicos da UCSF, do Instituto Gladstone, da Faculdade de Medicina Icahn de Mount Sinai e do Instituto Pasteur, de Paris, com a recomendação de se esforçarem para encontrar possíveis tratamentos para a Covid-19 nas prateleiras das farmácias.

O primeiro passo foi combinar biologia e informática e desenvolver um modelo computacional com 332 proteínas humanas das quais o vírus depende para infectar as células e se replicar. Em seguida, os pesquisadores estudaram quais medicamentos já comercializados ou que estão em fase avançada de desenvolvimento poderiam visar esses genes e impedir que eles fossem usados pelo Sars-Cov-2 para sobreviver. “É uma mudança de paradigma. Uma nova forma de descobrir medicamentos”, afirma Krogan.

O modelo computacional apontou que 66 dessas proteínas são sensíveis a 69 compostos que, hoje, estão presentes em 29 medicamentos já aprovados pela Food and Drug Adminstration (FDA) e 40 encontram-se em fase de ensaio clínico (com humanos) ou pré-clínicos (em animais). Com esses dados em mãos, os pesquisadores começaram a estudar, em laboratório, o efeito das substâncias identificadas na interação do vírus com as células humanas.

Primeiro, os cientistas introduziram o coronavírus nas células humanas em cultura. Uma vez dentro delas, as proteínas virais encontraram proteínas humanas específicas, às quais poderiam se ligar — da mesma forma que fazem durante uma infecção normal. Depois de identificar as estruturas do hospedeiro usadas pelo Sars-Cov-2, os pesquisadores chegaram a 69 moléculas que pareciam mais promissoras para impedir o mecanismo. De acordo com Krogan, 47 delas mostraram-se eficazes. O pesquisador ressalta, contudo, que os estudos não foram feitos em pessoas ainda, e que ninguém deve comprar os remédios apontados pelo artigo para automedicação.

Cloroquina

Um dos compostos que, de acordo com a pesquisa, conseguiu bloquear a interação do vírus com as células humanas, em laboratório, foi a polêmica cloroquina. A substância antimalária foi apontada por pequenos estudos como promissora, mas não é consenso na comunidade médica devido aos efeitos colaterais — algumas pessoas morreram ao fazer uso da droga recentemente. Krogan destaca que outros medicamentos foram eficazes nos testes e têm baixa toxicidade. O biólogo ressalta os efeitos negativos da cloroquina em genes associados à função cardíaca como um dos principais motivos pelos quais ela não é uma boa opção para a Covid-19. Nos testes, os pesquisadores observaram que a substância se liga a uma proteína conhecida como hERG, que é fundamental para regular a atividade elétrica no coração. Isso pode ajudar a explicar os possíveis riscos cardiovasculares associados ao composto.

Duas categorias de medicamentos surgiram como agentes promissores para reduzir a infectividade viral: os inibidores da tradução de proteínas e compostos que modulam, dentro das células, proteínas conhecidas como receptores Sigma1 e Sigma2. São medicamentos hormonais, antipsicóticos, ansiolíticos, antidepressivos e anti-histamínicos, além da cloroquina. Entre os inibidores da tradução de proteínas, o efeito antiviral mais forte in vitro foi observado com uma droga atualmente em ensaios clínicos para câncer de pâncreas, e outra já aprovada pela FDA para o tratamento de mieloma múltiplo.

Já entre os moduladores Sigma1 e Sigma2, um antipsicótico usado no tratamento da esquizofrenia mostrou a mais forte atividade antiviral contra o Sars-Cov-2. Dois potentes anti-histamínicos também foram eficazes, assim como um hormônio feminino, mas em menor grau. Um medicamento com esse mecanismo que está em fase pré-clínica teve atividade antiviral aproximadamente 20 vezes maior do que a hidroxicloroquina, informa o biólogo.“Continuamos a procurar agentes adicionais direcionados às proteínas humanas usadas pelo Sars-Cov-2 para expandir o arsenal contra o vírus”, afirma Krogan.

Confiança

“Embora esses sejam dados iniciais, temos um alto grau de confiança nos resultados, pois observações semelhantes sobre a atividade antiviral desses medicamentos surgiram de trabalhos realizados de forma independente no Mount Sinai e no Instituto Pasteur”, comenta Adolfo García-Sastre, diretor do Instituto Global de Saúde e Patógenos Emergentes da Faculdade de Medicina Icahn de Mount Sinai. “A pesquisa nessa velocidade e magnitude só poderia ter sido realizada por meio de um esforço colaborativo de vários cientistas de várias instituições, cada um trazendo habilidades únicas, mas complementares, para um objetivo comum.”

Krogan diz que o próximo passo é investigar mais detalhadamente os compostos mais promissores para, em seguida, começarem os ensaios clínicos. “Estamos trabalhando com várias empresas farmacêuticas e de biotecnologia para avaliar a eficácia antiviral e a segurança dos candidatos a medicamentos que mostraram a maior promessa em nossos experimentos de laboratório.”



332
proteínas humanas das quais o vírus depende para infectar as células e se replicar foram consideradas na análise dos pesquisadores