Mundo

'O sistema de saúde colapsou'

Presidente autodeclarado da Venezuela, Juan Guaidó contesta dados sobre a Covid-19 no país, prevê desastre agravado pela pandemia, revela a existência de apenas 384 respiradores artificiais e fala sobre mudança do regime

 

 

Com 329 casos de infecção pelo novo coronavírus e apenas 10 mortes, a Venezuela é uma das nações da América do Sul supostamente menos atingidas pela pandemia, segundo dados oficiais. Para o presidente autodeclarado venezuelano, Juan Guaidó, o regime de Nicolás Maduro mente. “Não apenas com respeito à Covid-19, como também em relação à inflação, ao Produto Interno Bruto e ao fornecimento de gasolina. Maduro mente sobre os casos, mas também sobre a ineficácia do sistema de saúde, que não tem capacidade de processamento de testes de diagnóstico”, afirmou, em entrevista exclusiva ao Correio. “O novo coronavírus pode agravar muito mais o desastre que enfrentamos.” De acordo com Guaidó, a Venezuela dispõe apenas de 384 respiradores artificiais — um para cada 75 mil pessoas — e os hospitais carecem, inclusive, de água. Por telefone, o líder opositor detalhou as medidas que tomou para responder à pandemia, inclusive o repasse de US$ 100 mensais a 60 mil enfermeiros. “É dinheiro recuperado da ditadura e da corrupção.” Segundo ele, a mudança de regime na Venezuela é “indispensável”. Guaidó também garantiu que a oferta de anistia a Maduro segue vigente.

 

Dados oficiais indicam que a Venezuela registra 329 casos da Covid-19 e 10 mortes.  Qual é a real dimensão da pandemia?

Eu descreverei as condições que atravessamos. Temos somente 84 respiradores artificiais no sistema público de saúde e 300 no sistema privado para atender a toda a população. O primeiro caso publicado da Covid-19 ocorreu em 13 de março. Um taxista morreu depois de apresentar sintomas desde 29 de fevereiro. Duas semanas antes de o caso ser divulgado. Não há água em 83% dos locais em Venezuela; 56% dos hospitais não recebem água encanada de maneira constante — o principal elemento de prevenção do novo coronavírus. Vivemos uma emergência humanitária complexa há mais de dois anos. Como se não fosse suficiente, a ONU apontou a Venezuela como um cinco países com maior risco de fome “bíblica”. Isso é o que sofremos sob a ditadura. Não há expressão de direitos fundamentais, nem serviços públicos. As cifras anunciadas pelo regime de Nicolás Maduro, hoje, são as mais baixas da América Latina.

 

Há risco de desastre, com milhares de óbitos? O sistema hospitalar tem condições de suportar a pandemia?

Nós já estamos atravessando o desastre. São 5 milhões de refugiados venezuelanos. No Brasil, são mais de 260 mil; 1,7 milhão na Colômbia; e quase 1 milhão no Peru. Produtos da crise e da emergência. Cerca de 7 milhões de venezuelanos estão em emergência humanitária completa. Pode ocorrer um agravamento, uma piora, produto da pandemia. O sistema de saúde não está preparado para suportar emergência dessas características. Nem sequer há unidades de tratamento intensivo. Na Venezuela, são apenas 84 UTIs operacionais. O Hospital de Niños J. M. de los Ríos, o principal hospital pediátrico do país, ficou sem eletricidade por sete horas e o gerador não funcionou. Lamentavelmente, o nosso sistema de saúde já estava colapsado antes mesmo da pandemia. O novo coronavírus pode agravar muito mais o desastre.

 

Que medidas o senhor tomou para o enfrentamento ao coronavírus?

Tomamos quatro medidas específicas, além de todo o tema da articulação internacional. Em primeiro lugar, colocamos à disposição da população venezuelana um mecanismo de teleconsulta, ante a saturação do sistema sanitário da Venezuela. Voluntários têm trabalhado na testagem de diagnóstico e no cuidado médico. Foram processadas mais de 30 mil chamadas, das quais 474 derivaram de atenção pessoal, por apresentarem sintomas similares aos da Covid-19. Canalizamos, por meio de doações, mais de US$ 20 milhões junto a organismos multilaterais — como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Panamericana da Saúde (Opas), a Cruz Vermelha — e a fundações na Venezuela. Também US$ 9 milhões adicionais por meio do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), doados pelos EUA. Também há um fundo europeu que estamos canalizando. Além disso, concedemos um bônus a profissionais de saúde na Venezuela. Um enfermeiro ganha entre US$ 2 e US$ 4 ao mês no país. É uma miséria. Não tem como garantir a subsistência. Fornecemos bônus de US$ 100 mensais. Mais de 40 mil profissionais de saúde foram inscritos até o momento para ter o benefício. 

 

De onde saiu o dinheiro desse bônus aos profissionais de saúde?

Esperamos que esse benefício contemple 60 mil pessoas. Isso vai ajudar suas famílias e na proteção que possam dar aos venezuelanos. É dinheiro recuperado da ditadura e da corrupção. Dinheiro que estava protegido da Venezuela e o qual conseguimos canalizar por meio de nossos aliados para entregá-los a cerca de 60 mil famílias.


O senhor defendeu a formação de um governo de emergência para combater a Covid-19. Como seria esse gabinete? 

Isso está alavancado a dois elementos. O primeiro está nas conquistas obtidas com a mediação da Noruega: um governo de transição, de emergência nacional, com ancoragem constitucional em um Conselho de Estado. Isso é, delegar funções executivas a um Conselho de Estado para conformar um governo de emergência que institucionalize o país e termine em eleições realmente livres na Venezuela. Nossos aliados veem em risco a própria segurança, pelo fato de Nicolás Maduro estar vinculado e acusado de narcotráfico e de terrorismo. Quem pode participar do governo? Todos os venezuelanos que possam dar um passo adiante. Quem não pode participar? Aqueles que tenham ligação com o narcotráfico, o terrorismo e a violação dos direitos humanos. Nosso governo pode incluir as Forças Armadas e o povo, que não suporta a ditadura de Maduro.


O senhor está no cargo desde janeiro de 2019. Nesse período, quais foram as suas conquistas?

Nós mantemos o exercício da maioria na Venezuela. Em março, antes da pandemia, obtivemos o reconhecimento de vários países, a confiança em uma possível transição na Venezuela e a articulação de um plano de transição e de emergência urgente. Vou dar um exemplo. A Venezuela tem uma das maiores reservas petrolíferas do mundo. Durante 20 anos, investiu mais de US$ 300 bilhões na indústria petroleira. Somente três nações aplicaram mais: Arábia Saudita, Rússia e EUA. Eles produzem mais de 10 milhões de barris de petróleo por dia. A Venezuela processava 1,3 milhão de barris diários em nossas refinarias; hoje, produzimos zero. Quais foram nossas conquistas? Resistimos à ditadura e consolidamos a maioria no país; não somente nos partidos e na Assembleia Nacional como na sociedade. Também fomos reconhecidos por mais de 60 países. Temos a oportunidade de executar o plano de transição e de buscar financiamento para estabilizar nossa indústria, nossa agro-indústria e a nação. O mais importante é termos a confiança do povo.

 

Ainda é possível uma mudança de regime na Venezuela? 

Não somente possível, como indispensável. Hoje, Maduro representa um risco não apenas para o povo venezuelano, mas para o continente. Tivemos casos de febre amarela e de malária na fronteira entre Venezuela e Brasil. Tudo tem a ver com o chamado “ouro de sangue” na Amazônia. Cinco milhões de refugiados, superando a Síria. Ligação com o Hezbollah, o Exército de Libertação Nacional (ELN) e dissidências das Farc, tráfico de drogas na Venezuela — produto do amparo que Maduro desfruta na região. É uma crise sem precedentes na Venezuela, a qual afeta todo o continente. Há quase um ano, notou-se o descontentamento nas Forças Armadas. A crise na ala militar aumentou.


Os EUA ofereceram recompensa de US$ 15 milhões por Maduro. Qual o efeito prático disso?

A medida diz respeito a responsabilizar Maduro pela questão do narcotráfico. Apesar de parecer distante, é uma ação rumo à Justiça. É a terceira maior recompensa da história. Todos os atos e ações em direção da justiça serão em prol da humanidade.

 

O senhor pretende oferecer anistia a Maduro e a outras autoridades do regime, caso deixem o poder?

Na Assembleia Nacional, oferecemos a Lei de Garantias e de Anistia. O regime reagiu com infinita soberba, refletida na fome e em 5 milhões de migrantes. Temos uma causa judicial internacional, com investigações em curso no Tribunal Penal Internacional. A oferta da Lei de Garantias e de Anistia segue de pé, hoje respaldada pelo mundo. O mais importante é que ninguém pode formar um Conselho de Estado gerado pelo narcotráfico ou pelo terrorismo. Não resolveríamos o problema da Venezuela. O desbloqueio das soluções na Venezuela passa pela saída de Maduro do poder.

 

 

“O novo coronavírus pode agravar muito mais o desastre que enfrentamos”

 

“Maduro representa um risco não apenas para o povo venezuelano, mas para o continente”