Os Estados Unidos arrumaram um jeito de estarem, mais uma vez, entre os dois abismos políticos: o ceticismo de um lado; o fanatismo de outro. 1ª Tese: A metafísica do ser humano não muda; é pró ou contra.
O amplo número de concorrentes democratas que permanecem na disputa é um sinal das fraturas internas do partido e da perda de controle dos seus donos sobre o sentimento e as ações das bases.
É bom lembrar que Donald Trump, em 2016, era tido como alguém que podia ter dizimado o establishment republicano, mas seria parado pela família Clinton e suas bem estruturadas alianças através dos dois partidos, dos setores sociais e das agências do governo. Mas Trump ultrajou, entusiasmou. 2ª tese: Quem é protagonista não se importa com vexame. Vença, e será considerado imbatível.
Alguma coisa mais profunda havia se quebrado na estrutura socioeconômica americana, e o país se abria para um tempo de experimentações não ortodoxas.
O forasteiro da vez é Bernie Sanders, que recebeu a maioria dos votos populares em cada uma das três primárias ocorridas até agora. Performances obtidas na rural Iowa, com suas extensas plantações de milho no meio do país; na costeira New Hampshire, uma das 13 colônias estabelecidas pela Inglaterra nas margens do Atlântico Norte; e em Nevada, capital do jogo no Oeste.
Diferentemente de Trump, que nunca teve cargo eletivo, Bernie Sanders é senador. Mas, ao contrário da quase totalidade dos políticos americanos, ele ganhou suas eleições como candidato sem partido. Apesar de ter perfil e plataforma diferentes, assim como Trump, Sanders é fruto da crise econômica de 2008 que, mal resolvida, ameaça ter um segundo mergulho no escuro a qualquer momento. 3ª tese: As crises têm o mesmo fervor das paixões.
Sanders vem sendo alvejado por cada um dos demais pré-candidatos democratas desde o primeiro minuto. É questionado sobre todos os fantasmas que atrapalham a elegibilidade de um candidato, inclusive o fato de ser judeu. Noves fora, o fato é que o establishment democrata não engole Sanders. E isso aumenta sua popularidade num contexto em que a ordem social não está pacificada. 4ª tese: Ser do contra é a verdadeira amizade para os perdedores.
Depois de amanhã, não só a maior parte das primárias ocorrerá, mas farão suas escolhas os dois maiores estados do país, Califórnia e Texas. A essa altura do campeonato, em 2016, os democratas só tinham dois pré-candidatos: Sanders e Hillary Clinton. Hoje, são sete. É gente demais.
Do lado republicano, em 2016, Trump chegou à Superterça contra três oponentes. Enquanto isso, no lado democrata, Hillary Clinton passou muito mais aperto do que o previsto contra Sanders e teve que seguir na disputa contra ele até junho. É que, em 2016, a Califórnia só foi ter suas primárias em junho, quando deu mais votos para Hillary, selando seu favoritismo. Nesta terça, Sanders é o favorito, com chance de ganhar talvez a maioria dos delegados também no Texas.
Se Sanders abrir uma larga vantagem e Joe Biden, seu maior concorrente, não ganhar tração, será curioso ver o que os democratas farão. A lógica é que alguma consolidação ocorrerá. Seja na direção de fortalecer um candidato contra Sanders ou ceder espaço para ele passar.
Nesse quesito, quem tem dinheiro para bancar a empreitada é Michael Bloomberg, o ex-prefeito de Nova York, ora democrata ora republicano, e que já colocou do seu próprio bolso US$ 500 milhões só para propaganda de TV. Segundo diz a própria agência de notícias Bloomberg, da qual é dono, isso representa US$ 190 milhões a mais do que todos os demais pré-candidatos combinados.
Talvez seja um melhor entretenimento ver Sanders, o candidato antibilionários, cujas propostas principais são as de criar um SUS nos EUA, voltar o nível de imposto de renda para o patamar que era na época de Eisenhower, promover a sindicalização e conter a mudança climática, debatendo com Bloomberg, um multibilionário de verdade, muito mais afluente e menos carismático do que Trump.
Todavia, Bloomberg pode se dar conta de que seu poder de fogo financeiro faz mais sentido se apoiar alguém que de fato esteja numa posição central entre Sanders e Trump. Se não for Biden, essa pessoa teria que ser inventada, sem haver tempo para tal, a não ser na base de muito dinheiro.
O mais provável é que os problemas americanos sejam debatidos em setembro em Notre Dame, Indiana, entre os heterodoxos Trump e Sanders. Daqui até junho, o Partido Democrata vai demonstrar o quanto de resistência e disposição ainda existe contra uma reformulação significativa do papel e da cara dos EUA, dentro e fora do país. 5ª tese: Política são fronteiras onde todos acabam obrigados a conviver com o outro lado.