A Organização Mundial de Saúde (OMS) elevou ontem a ameaça representada pelo Covid-19, o novo coronavírus, a um nível “muito alto” em escala global — o mais grave na avaliação de risco usada pela entidade. “O aumento contínuo do número de casos e o número de países afetados nos últimos dias são claramente preocupantes”, reconheceu Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da OMS. “Nossos epidemiologistas acompanham esses desenvolvimentos constantemente e agora aumentamos nossa avaliação do risco de propagação e do impacto do Covid-19 para um nível muito elevado em todo o mundo. (…) Estamos em um momento decisivo. Nenhum país deve pensar que não terá casos. Isso seria um erro fatal, literalmente. O vírus não respeita fronteiras.”
De acordo com Tedros, há diferentes cenários em distintos países, e também dentro de uma mesma nação. “A chave para conter o coronavírus é romper as cadeias de transmissão. Ainda temos chance de conter a epidemia”, afirmou. Ele destacou que mais de 20 vacinas são desenvolvidas em todo o mundo, e vários produtos terapêuticos estão sendo submetidos a testes clínicos, antes da fabricação em escala industrial. Ontem, a África Subsaariana registrou o primeiro caso da doença, na Nigéria — um italiano que chegou de Milão em 25 de fevereiro e foi hospitalizado. Depois do caso reportado no Brasil, a América Latina anunciou a segunda infecção: um jovem do México, considerado o paciente zero no país.
Até o fechamento desta edição, 83 mil pessoas de 50 nações tinham sido infectadas. O número de mortos chegava a 2.903, dos quais 2.835 na China. A Coreia do Sul, principal foco de infecção fora da China, contabilizou ontem mais 594 casos, aumentando o saldo para 2.931 (incluindo 13 mortos). Apesar das medidas de quarentena impostas a 50 milhões de pessoas, o governo chinês confirmou 427 casos novos, ou seja, mais do que na véspera, elevando o total para 79.251.
Transmissão
Ainda que Tedros garanta não haver evidências de que o Covid-19 se espalha livremente em comunidades, o médico brasileiro Jarbas Barbosa — subdiretor da Organização Panamericana da Saúde (Opas) — disse ao Correio que ocorre transmissão comunitária e sustentada na China, no Irã, na Itália e na Coreia do Sul. “O nível de alerta que levou à decretação do Covid-19 como emergência de saúde pública de nível internacional se deve ao fato de se tratar de um vírus novo, com capacidade de transmissão bem comprovada. Até que se tenha estabelecido completamente o seu potencial de gravidades, e justifica o nível de alerta para esse vírus. Alarmismo e pânico, não, mas alertar para que os sistemas de saúde estejam preparados e com os sistemas de vigilância em alerta”, explicou.
Segundo Barbosa, a emergência de saúde pública de importância internacional é “o mais alto grau dentro do regulamento sanitário mundial”. “A pandemia é uma caracterização técnica, quando existe uma epidemia em vários países de diferentes regiões ao mesmo tempo, com transmissão sustentável na comunidade”, comentou. Ele defende que as nações desenvolvam estratégias bem definidas e de contenção, a fim de se prepararem para esse cenário. Por sua vez, o infectologista norte-americano Robert Charles Gallo, um dos cientistas que isolaram o HIV nos anos 1980, admitiu que o quadro pandêmico pode ser reconhecido pela OMS em uma ou duas semanas (leia entrevista).
Barbosa acredita que levará pelo menos um ano até que uma vacina contra o Covid-19 seja produzida em escala industrial. “O processo se acelera, com ensaios e o uso de medicamentos antivirais e antirretrovirais já disponíveis, Acho que daqui a algumas semanas, teremos a incorporação do uso de algum mediamento para reduzir os casos graves”, comentou. O subdiretor da Opas ressaltou que existem mecanismos de prevenção da doença. “É muito importante lavar as mãos várias vezes ao dia. Quando tossir ou espirrar, é importante colocar à frente da boca um lenço descartável, jogar fora o mesmo e lavar as mãos com água e sabão.”
Alerta mundial
Animais em quarentena
Todos os animais de estimação das pessoas infectadas com o novo coronavírus em Hong Kong também ficarão em quarentena por 14 dias, anunciaram as autoridades, depois da descoberta que o cachorro de uma mulher doente estava contaminado. O animal não apresenta nenhum sintoma, mas “amostras coletadas na cavidade nasal e oral apresentaram resultados positivos, em níveis muito baixos”, afirmou um porta-voz do Ministério da Agricultura, Pesca e Proteção Ambiental de Hong Kong. As autoridades não explicaram os motivos para fazer os testes em um animal. A dona do cão testou positivo na quinta-feira e está em quarentena. O animal deverá ser submetido a outros testes e ficará em quarentena em um abrigo de animais.
Medo e orações a Alá
A epidemia do Covid-19 também afetou a Umra, a peregrinação a Meca que pode ser realizada em qualquer época do ano, ao contrário do Haj. Apesar de não registrar nenhum caso da doença, a Arábia Saudita suspendeu “temporariamente” a entrada de peregrinos na cidade santa, uma medida sem precedentes. Os pisos da Grande Mesquita Sagrada são lavados quatro vezes por dia, cerca de 13.500 tapetes de oração foram removidos e outros tiveram que ser desinfetados, segundo as autoridades. Todos os anos, Meca recebe milhões de fiéis para a Umra.
“Querem derrubar Trump”
Mick Mulvaney, chefe de gabinete interino da Casa Branca, acusou a mídia norte-americana de tentar derrubar o presidente Donald Trump ao alimentar o medo entre a população. “A razão pela qual estão prestando tanta atenção a isso hoje é que eles (jornalistas) acham que isso levará à queda do presidente”, comentou. Ao falar a um grupo de conservadores, ontem, Mulvaney sugeriu que as pessoas “ignorem a mídia” para acalmar os mercados.
Concertos cancelados
O grupo sul-coreano de K-pop BTS (foto) anunciou o cancelamento de shows agendados para abril em Seul, devido ao surto. A banda de sete garotos, um dos fenômenos musicais no mundo, tinha quatro datas agendadas no Estádio Olímpico de Seul para promover o álbum Map of the Soul: 7. Mais de 200 mil fãs eram esperados para as apresentações no estádio, informou a Big Hit Entertainement, que agencia a banda. O BTS é o primeiro grupo de K-pop a alcançar o topo das vendas nos EUA e Grã Bretanha. Por sua vez, a banda de punk rock Green Day cancelou shows em Bangcoc, Manila, Seul e Osaka (Japão).
>> entrevista Robert Charles Gallo
Cientista que isolou HIV cita alto poder de contágio
Em 1984, o norte-americano Robert Charles Gallo e os franceses Luc Montagnier e Françoise Barré-Sinoussi isolaram o HIV, vírus causador da Aids. Quase quatro décadas depois, Gallo, hoje com 82 anos, avalia o Covid-19 como um vúrus “muito infeccioso”, mais do que os responsáveis pela Síndrome Aguda Respiratória Severa (Sars) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), as duas outras epidemias registradas em vários países na última década. Cofundador e diretor do Comitê de Lideranças Cientificas Internacionais da Rede Global de Vírus e diretor do Instituto de Virologia Humana (IHV) da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, Gallo falou com exclusividade ao Correio, por telefone, sobre o coronavírus Covid-19.
Qual é o nível de gravidade representado pelo novo coronavírus e por que há tanto alarmismo, se a gripe mata milhões de pessoas por ano?
A gripe não mata milhões de pessoas por ano. Em alguns anos, ela matou muitos milhões. Isso ocorreu com a famosa epidemia entre 1917 e 1919, que matou uma enorme quantidade de pessoas. Mas a gripe comum mata bem menos, de centenas de milhares a meio milhão de pessoas por ano. Às vezes, um pouco mais. Se não tivermos uma postura grave, esta será a abordagem correta? O coronavírus tem sido tratado com gravidade considerável por motivos óbvios. Sua eficiência de propagação o torna muito infeccioso, diferentemente da maioria dos vírus conhecidos. Se ele é mais contagioso do que o influenza (vírus da gripe), ainda não sei. Trata-se de um vírus muito infeccioso. Entre os mais velhos, existe um índice importante de letalidade. Estudos na Itália mostram que os jovens não morrem, mas a mortalidade em pessoas acima de 60 anos é significativa. Se você tiver mais de 70 anos, a letalidade sobe. Se tiver mais de 80, ela se aproxima de 15%. Um morto em cada seis pessoas não é algo trivial. Outro fato para a gravidade ser levada em conta está no fato de o vírus ser novo. Algo não conhecido pela humanidade cria grande incerteza. Ficar excessivamente nervoso em relação a isso não vai ajudar, mas uma resposta inteligente é exigida pelos países.
O que torna o Covid-19 perigoso?
Na última década, houve três epidemias: a Sars, a Mers e, agora, o Covid-19. Todas eram novas e muito infecciosas. O coronavírus parece ser o mais contagioso.
Por que a OMS ainda não declarou pandemia?
Não sei quais as exigências oficiais para se declarar pandemia. Mas pandemia quer dizer uma epidemia global. Se você sabe quantos países são atingidos, não importa a denominação “epidemia” ou “pandemia”. A maioria dos países enfrentará o coronavírus, mais cedo ou mais tarde. Parece que mais cedo. Provavelmente, o coronavírus não se encaixa na definição, mas isso pode mudar em uma ou duas semanas.
O mundo está pronto para enfrentar essa doença?
É muito difícil responder a essa pergunta. Sempre haverá mais a ser feito. Cientistas e médicos chineses se saíram muito bem em sua resposta. A preparação e o conhecimento sobre o vírus têm se acelerado. Há nove anos, os EUA e a Europa criaram a Rede Global de Vírus, que trabalha em 52 centros espalhados por 32 países. Os melhores infectologistas do mundo se conectam por essa rede, cobrindo todos os vírus. Acho essencial que a Rede Global de Vírus esteja comprometida com o coronavírus.
Que ações os governos devem tomar para conter a transmissão?
Para conter a doença, temos de conhecer as infecções. Para conhecer as infecções, precisamos ter diagnósticos de excelência. Os diagnósticos estão sendo refinados. Por meio do diagnóstico, podemos saber onde o vírus está, onde existe uma epidemia e onde há casos isolados. Um bom diagnóstico é imperativo. Precisamos de tratamentos para pessoas infectadas de forma aguda. O melhor que um governo pode fazer é assegurar que haja testes eficientes, para depois afastar os infectados do resto da população. Os governos podem se certificar de alertar suas populações sobre buscarem o diagnóstico se estiverem sob suspeita de contágio, se tiveram contato com alguém que apresentou sintomas ou se viajaram a regiões de alta incidência. Essas populações precisam saber que, se testarem positivo, devem procurar um hospital e manter distância de outras pessoas. Se você não estiver infectado, procure não colocar as mãos sobre superfícies que são comumente tocadas e depois levá-las aos olhos, boca e nariz.
Quão distante o mundo está de uma vacina eficaz?
Você nunca pode prever o tempo até uma vacina eficaz até que ela exista e seja comprovada. Mas podemos dizer que haverá testes dentro de um ano. Se funcionarão, somente o tempo dirá.(RC)