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Quando ser mulher é sentença de morte

Casos de feminicídio aumentaram 136% nos últimos cinco anos e levaram a população a protestar, depois do assassinato de menina de 7 anos e do esquartejamento de jovem. Presidente Andrés Manuel López Obrador culpa individualismo e revolta se intensifica


Ingrid Escamilla, 25 anos, escreveu em seu perfil no Twitter, em 29 de março de 2018: “O feminismo termina quando o seu melhor argumento é ‘pelo fato de sermos mulheres’. Nós somos pessoas”. Passados 320 dias desde a publicação, Ingrid foi brutalmente assassinada a facadas e teve o corpo desmembrado pelo companheiro, em 8 de fevereiro passado. Setenta e duas horas depois, Fatima Cecilia Aldrighett, 7 anos, foi raptada, torturada e teve o cadáver encontrado dentro de uma sacola plástica. Os dois casos aumentaram a revolta da população mexicana contra a “epidemia” de feminicídio que assola o país. Em 2019, 1.006 mulheres tiveram a vida arrancada por homens, muitas vezes os próprios companheiros — nos últimos cinco anos, houve um aumento de 136% nos registros de feminicídios.

As reações do presidente Andrés Manuel López Obrador inflaram a indignação popular. O chefe de Estado divulgou uma espécie de decálogo contra a violência dirigida às mulheres. “Estou contra a violência em qualquer manifestação; deve-se proteger as vidas de homens e mulheres; é uma covardia agredir uma mulher; o machismo é um anacronismo e um ato de brutalidade; é preciso respeitar as mulheres”, afirmam alguns dos mandamentos criados pelo governo do México e alvos de críticas inclusive entre os congressistas mexicanos.

López Obrador denunciou o “coletivo feminista” que saiu às ruas para protestar aos gritos de “Estupram mulheres, protegem monumentos!” e “Os feminicídios são crimes de Estado”. “Elas se opunham à regeneração moral que estamos promovendo. Eu respeito suas visões, mas não as compartilho. Creio que temos de moralizar o país, purificar a vida pública e fortalecer os valores culturais, morais e espirituais”, defendeu. “Estamos compreendendo as causas e pensamos que teremos uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna, com valores, onde o individualismo não seja o que prevaleça, mas sim o amor ao próximo.” Foi o bastante para ser chamado de insensível ante uma tragédia que não escolhe classe social nem idade.

Moradora de Chalco, a 41km da Cidade do México, a dona de casa Guadalupe Mendoza Alvares, 44 anos, não conteve as lágrimas ao relatar à reportagem sobre o assassinato da filha Camila Espinoza Mendoza, de 9, violentada pelo segurança da rua (leia o Depoimento). “Parece que, para o governo, nós, mulheres, não valemos nada. É muito pouco o que se tem feito”, lamentou. “Minha filha tinha uma vida inteira pela frente. Planos e ilusões, como todas as meninas ou mulheres. Penso que o feminicídio é consequência do machismo, da educação dos pais e da desintegração familiar.”

Transparência

Em 14 de fevereiro, a jornalista e ativista Frida Guerrera questionou López Obrador durante uma entrevista coletiva e deixou o presidente visivelmente desconfortável, ao apontar “falta de clareza” no discurso do chefe de Estado. “O feminicídio existe, não podemos negá-lo nunca. Somente em 2020, são mais de 250 feminicídios. Por que não existe uma promotoria especializada para esse tema?”, declarou. Por telefone, Frida afirmou ao Correio que o aumento no número de assassinatos de mulheres se deve a anos de “imensa impunidade”. “Não se escutaram os gritos delas nos últimos 20 anos. Faltam respostas das autoridades para investigar esses crimes”, disse a autora do livro #NiUnaMás. “É preciso modificar as estruturas das instituições que combatem o tema da impunidade. Não se vê um trabalho ativo.”

Para Frida, o feminicídio é um tema de educação. “Alguns homens creem que nós lhes pertencemos; sentem que somos deles, que podem nos tomar quando quiserem e tirar nossas vidas. É um tema estrutural”, admitiu a ativista. “Chegamos a um limite de cansaço, estamos preocupadas e ocupadas em exigir políticas públicas. O objetivo principal é tornar visíveis todos esses casos de dor para que possamos manter as mulheres vivas.”

Diretora para as Américas da Anistia Internacional, Erika Guevara Rosas disse ao Correio que dois terços das meninas e mulheres mexicanas de 15 anos ou mais sofreram violência de gênero ao menos uma vez na vida. “Nem todos os feminicídios são classificados como tal ou denunciados. As razões do fenômeno vão desde a cultura patriarcal, enraizada na sociedade; a falta de políticas públicas coerentes e de vontade política dos Estados para atender à crise de violência contra as mulheres”, comentou. Ela concorda que os altos índices de impunidade são cruciais para compreender o fenômeno. “No México, mais de 90% dos casos ficam sem solução.” Erika reconhece que o país atravessa uma das piores crises de direitos humanos, com impacto desproporcional nas vidas de mulheres e crianças. “Com suas políticas fracassadas de segurança, os governos tornam invisível a atroz realidade enfrentada por elas.

» Duas perguntas para


Erika Guevara Rosas, diretora para as Américas da Anistia Internacional

Como a senhora analisa o fenômeno do feminicídio no México?
Tristemente, a violência contra as mulheres e meninas continua endêmica em todo o mundo e, particularmente, em nosso continente. A violência de gênero é uma das expressões mais dolorosas e um dos legados mais nefastos que evidenciam o fracasso dos Estados em prevenir e eliminar todas as formas de violência enfrentadas pelas mulheres e meninas. Apesar dos avanços legislativos e institucionais, os feminicídios seguem aumentando em toda a região. No México, essa forma mais extrema de violência se expandiu em todo o território nacional, além de outras graves violações dos direitos humanos, como o desaparecimento de mulheres e meninas, ou a prática da tortura sexual.

De que forma a senhora avalia a reação do governo López Obrador a esses crimes?
É alarmante que a resposta do governo do presidente López Obrador seja exatamente igual à das administrações passadas. Sua indiferença e sua indolência enviam uma mensagem nefasta aos perpetradores da violência, aos que matam, violam e violentam mulheres e meninas. Elas lhes dizem que as vidas delas não são importantes, nem prioritárias. Os feminicídios se converteram em emergência nacional, a qual exige ação urgente de todas as autoridades do Estado a nível local, estatal e federal. O governo do presidente Andrés Manuel López Obrador não demonstrou que os feminicídios e outras violências contra as mulheres são um tema prioritário. (RC)

» Depoimentos

“Minha vida não tem mais sentido”

“Em 14 de outubro de 2018, minha filha foi a um comércio. Dez minutos depois, sem que retornasse para casa, fomos até o local e me disseram que ela jamais chegara ao estabelecimento. Comecei a buscá-la feito louca. Uma vizinha me contou que viu um homem a puxando, mas não sabia que era Valéria. Comecei a buscá-la com o maior desespero. Nós e a polícia municipal buscamos minha filha durante toda a noite. No dia seguinte, às 10h, a 100m de minha casa, em um terreno baldio, encontraram minha filha, sem vida.
 
Foi aí que começou o martírio. Eu, como mãe, comecei a procurar por câmeras onde se veria o sujeito levando minha filha. Quatro dias depois, soubemos que o assassino é um homem que esteve preso pelos mesmos crimes de estupro e homicídio. Ele tinha de cumprir uma pena de 22 anos, mas ficou 18 anos na cadeia e saiu por boa conduta. Agora, foi condenado a 83 anos e 4 meses.

Minha vida agora é vazia e triste. Os dias são todos iguais.  Minha família foi destroçada. Minha filha era a caçula, era o nosso raio de luz (choro). Minha menina era linda, inteligente e estudiosa. Era um amor, em todos os sentidos. Minha vida foi desfeita (choro). Vejo as mamães com seus filhos e digo: ‘Meu Deus, por que minha filha?’. Esse vazio não se preenche. É viver por viver. Não posso traduzir isso. Ficamos com essa dor no peito. É um mundo de muita maldade. Por mais que eu tente entender o motivo de ele ter feito isso, não consigo.”

Adriana Romero Martínez, 37 anos, pasteleira, mãe de Valéria Ribero Romero (foto), 12, assassinada em 2018. Moradora da Cidade do México

“O coração de mãe fica destroçado”

“Em 31 de dezembro de 2018, minha menina Camila pediu autorização para que saísse à rua para soltar foguetes. Não contávamos que o segurança que supostamente nos vigiava tiraria a vida dela. Era um vizinho que morava em frente à minha casa. O mais doloroso é que, hoje, nossos filhos não podem nem sequer desfrutar da rua. Este homem abusou da confiança que minha filha depositava nele. Não apenas minha filha, mas todas as crianças da vizinhança, pois era ele quem cuidava delas.

Estamos em um processo de exigir justiça para que ela chegue até Camila. Levamos mais de um ano nesse doloroso processo. Apesar de haver provas e tudo, a Justiça ainda não ditou a sentença a esse indivíduo. Foi uma tragédia muito dolorosa para nós, pois nunca imaginávamos que o assassino poderia ser nosso vizinho. É algo terrível que as meninas e as mulheres, jovens e adultas, não possamos estar com nenhuma tranquilidade.

O coração de mãe fica destroçado. Morre grande parte de nosso coração. Creio que nossa vida terminou. Realmente, é uma dor que nunca poderemos superar. Penso ser possível superar qualquer perda, mas não da perda de um filho e menos por um ato tão covarde como o de privar a liberdade a uma menor, além do abuso cometido contra esses meninos, meninas e mulheres. Minha filha foi raptada, estuprada e assassinada em questão de minutos.”

Guadalupe Mendoza Alvarez, 44 anos, dona de casa, mãe de Camila Espinosa Mendoza, 9 anos, morta em 31 de dezembro de 2018. Mora em Chalco, a 41km da capital