O título do poema a seguir é Confidência: “Seus lábios sensuais / Vêm rapidamente /Ousar / Um beijo voluptuoso / Em meus versos pouco virtuosos”. O dono dos versos, o francês Marcel Nuss, 65 anos, convive por toda a vida com a amiotrofia espinhal. A doença degenerativa o levou à completa paralisia desde os 10 meses. Em setembro de 2013, o ensaísta e autor de Je veux faire l’amour (“Quero fazer amor”, pela tradução livre) fundou a Associação para a Promoção de Acompanhamento Sexual (Appas). Dois anos depois, a entidade começou a treinar assistentes sexuais e a colocá-las em contato com deficientes físicos. Perante a lei, o trabalho promovido por Nuss é ilegal. Para melhorar a vida de 12 milhões de franceses com deficiência, o governo do presidente Emmanuel Macron levantou o debate sobre a legalização da assistência sexual para essa parcela da população.
“Se o aconselhamento sexual for legalizado, seria uma coisa boa. Ainda não há um projeto de lei sobre o tema na Assembleia Nacional. Nenhum deputado, até o momento, quer divulgar tal projeto. Em 2015, o nosso advogado da Appas escreveu um rascunho, que foi apresentado ao parlamento, porém, sem resultado”, lamentou Marcel ao Correio. Ele admite que a assistência sexual equivale a uma prostituição “muito específica”. “Não importa. Profissionais do sexo assumem isso, sem vergonha. Apenas os opositores à prostituição se sentem incomodados”, acrescentou. Marcel é casado com Jilly, que trabalhou como assistente sexual entre 2012 e 2013. “Hoje, ela treina assistentes sexuais. O próximo curso ocorrerá em abril, perto de Montpellier (sul da França), onde moramos”, disse.
Aos 37 anos, moradora de Paris e paraplégica desde o nascimento, Cindy Keita defende que as pessoas com deficiência não esperem os políticos decidirem sobre a questão. “A França não tem mente aberta o suficiente para compreender essa causa no momento”, admitiu à reportagem, por e-mail. “Sou muito dividida sobre o tema. Entendo que pessoas com deficiências têm suas necessidades sexuais. A maioria dos pedidos para a legalização vem de homens; isso coloca as mulheres no escuro, mesmo se concordarem em ser profissionais do sexo”, advertiu. Apesar de ressaltar que não precisa de assistência sexual, Cindy reconhece os obstáculos para relações íntimas. “Além de nem sempre serem adequados para isso, os leitos médicos são caros. Eu me adapto e isso não reduz minha libido”, assegura.
Para sensibilizar a sociedade francesa, Cindy aceitou posar para o diretor de fotografia francês Hormoz, 49. “Construímos a exposição Ajutila, em torno da representação da vida emocional e sexual de Cindy. Desde então, encontrei-me com outras pessoas com deficiência para o projeto ‘Minhas cadeiras, minhas leis’. Busco desenvolver com elas histórias emocionais, sexuais e parentais por meio da fotografia”, explicou Hormoz ao Correio. Segundo ele, não é a primeira vez que um governo da França coloca o tema do acompanhamento sexual nos holofotes. “Não existe projeto de lei planejado até o momento, e a assistência sexual esbarra em resistências da classe política e da opinião pública. Da minha parte, obviamente, sou muito favorável. Todos têm o direito à sexualidade do modo que desejarem. Ao Estado não cabe legislar sobre sexualidade entre dois adultos que consentem”, opinou. O trabalho de Hormoz pode ser acessado em www.hormoz.fr.
Limbo
Arnaud De Broca, presidente do Collectif Handicaps, união de 48 associações de pessoas com deficiências e suas famílias, contou que o tema ressurgiu durante a Conferência Nacional sobre Deficiências, na última terça-feira, no Palácio do Eliseu. Na ocasião, Sophie Cluzel, ministra júnior para temas de deficiência, anunciou que entrou em contato com o Comitê de Ética Nacional sobre a questão dos assistentes sexuais. “Poucos anos atrás, o mesmo comitê se recusou a fornecer tal assistência. Até a presente data, não existe lei apresentada ao Parlamento, mas apenas um trabalho preparatório sobre temas éticos que isso possa representar. A adoção da lei não deve ocorrer a curto prazo: o comitê precisa emitir sua opinião; consultas devem ser organizadas; e a lei ser escrita, debatida, votada e aplicada”, disse.
Para De Broca, as pessoas com deficiência nem sempre conhecem o próprio corpo e o prazer. “É uma questão de permitir-lhes que tenham contato com outras pessoas, além dos médicos e familiares. Muitas deficientes, impossibilitadas de se mover, não experimentam essa sensação de prazer. É responder ao que alguns chamam de reconhecimento de um direito sexual. A abstinência forçada devido à deficiência obviamente tem consequências no cotidiano dessas pessoas”, ressaltou. Ele entende que o reconhecimento da profissão de assistente sexual exigirá uma estrutura jurídica, a fim de evitar ser assimilada à prostituição. “O debate também levantará a questão de comparação com pessoas sem deficiência, que poderiam reivindicar os mesmos direitos”, disse.
Depoimentos
“A lei nos vê como cafetões”
“Sou casado, além de ex-divorciado. Tenho dois filhos e um neto. Nunca utilizei a assistência sexual. Fundei a Associação para a Promoção de Acompanhamento Sexual (Appas). A lei francesa considera que somos cafetões. Tenho 65 anos, escrevi vários livros e a autobiografia Apesar do bom senso, a qual permite entender minha jornada e meus compromissos com a militância. Nasci com a minha deficiência. Não preciso de assistência sexual, mas entendendo muito bem as pessoas que dela necessitam. Minhas sensações sexuais são bem preservadas. Existem muito poucas deficiências que privam o prazer.”
Marcel Nuss, poeta, ensaísta e ativista a favor da assistência sexual a deficientes
Legislação e ética unidas
“O debate sobre assistência sexual exigirá a mudança da lei e dos textos aplicáveis. A questão não é somente ética, mas também legal. É necessário permitir o exercício desse direito, sem que isso represente dificuldades ou riscos legais para pessoas com deficiência. Possibilitar o uso de profissionais do sexo, sob ponto de vista ético, não fará sentido se não for algo legalizado. Atualmente, pessoas com deficiências que utilizam os serviços de assistente sexual podem ser condenadas, ainda que isso nunca tenha ocorrido, no meu conhecimento. Opositores a essa medida também temem que ela possa levar ao abuso e ao estupro de pessoas com deficiência, especialmente mulheres.”
Arnaud De Broca, presidente do Collectif Handicaps (união de 48 associações de pessoas com deficiência e suas famílias)
Como é em outros países
Holanda
- É pioneira no oferecimento de assistência sexual a pessoas com deficiência, no início da década de 1980. A Associação para as Relações Alternativas (SAR) presta esse tipo de serviço desde 1982, a tarifas que variam de 85 a 100 euros por hora. No país, a assistência sexual é considerada parte do tratamento; em alguns casos, o Estado devolve o dinheiro pago por esses serviços pelo seguro social.
Dinamarca
- A prostituição é descriminalizada no país, mas estão proibidas as atividades de cafetões e de bordéis. Profissionais do sexo precisam se registrar como trabalhadores independentes e pagar impostos, se receberem 50 mil euros ou mais por ano. O chamado “subsídio de invalidez” foi criado para permitir que pessoas com deficiência obtenham serviços de profissionais do sexo.
Bélgica
- A assistência sexual não foi regulamentada no país, que convive com questões morais que igualam a prática à prostituição — a profissão não tem status de clandestinidade, mas cafetões e bordéis são proibidos. O Comitê Nacional de Ética da Bélgica emitiu um parecer em 2017, segundo o qual “a assistência sexual deve constituir uma oferta de serviço reconhecida pelas autoridades públicas por meio de estrutura reguladora”.
Alemanha
- A prostituição é legal e regulamentada. Em 1995, foi criado um “serviço de contato corporal”. Em princípio, qualquer pessoa pode se tornar assistente sexual. Na maioria das vezes, massagens, carícias e penetração são proibidas.
Estados Unidos
- Não existe uma lei que proíba o acompanhamento sexual, embora a prostituição seja considerada crime na maioria dos estados. Na Califórnia, onde a prostituição é ilegal, as profissionais do sexo têm o status de “substitutas sexuais” (como se fossem substitutos de parceiros). A atividade é reconhecida e um acompanhante sexual pode até ser oferecido a uma pessoa com deficiência pelo seu médico ou terapeuta.
Inspiração para o cinema
Lançado em 15 de fevereiro de 2013 no Brasil, o filme As sessões retrata a luta do escritor e poeta Mark O’Brien para perder a virgindade. A poliomielite contraída na infância o fez perder os movimentos do corpo e passar parte do dia em um aparelho chamado de “pulmão de aço”. Para conhecer o sexo, Mark começa a frequentar uma terapeuta sexual, que lhe indica os serviços de Cheryl, interpretada por Helen Hunt. O longa venceu o prêmio do público e do júri no Festival de Sundance.