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Conexão diplomática



Não é só a Europa, não é só o Brexit

O desenlace matrimonial entre o Reino Unido e a União Europeia, com a ironia de um divórcio entre dois cônjuges que carregam no nome a ideia exatamente inversa, se candidata a dominar ou ao menos dividir o espaço mais nobre do noticiário pelos próximos meses. Em especial, pelo impacto regional e global da transição, e não apenas na esfera econômica e comercial. O tema será objeto incontornável e obrigatório de atenção para todo e qualquer governo, para arquitetos e estrategistas de política externa. Estará no cardápio cotidiano dos diplomatas e na agenda dos observadores e acadêmicos.

E é possível arriscar o prognóstico de que as interpretações terão maior capacidade para descortinar tendências e orientar opções quanto mais longo for o alcance do olhar lançado sobre o que se passa com o projeto de integração mais ambicioso jamais empreendido na era dos Estados nacionais. O Brexit, antes de ser o epicentro de novas ondas de choque que prometem estremecer as relações internacionais, é ele próprio a manifestação de um movimento de reacomodação em camadas geopolíticas mais profundas.

De saída, a primeira baixa entre os países-membros da UE coincide com o esgotamento do Estado de bem-estar social erguido na Europa do pós-Segunda Guerra. É esse modelo de prosperidade compartilhada, como âncora da estabilidade política interna e da paz na frente externa, que está em remodelagem ou desmanche puro e simples na maior parte do Velho Continente. Acossado pelos desafios da imigração em massa, da competição acirrada no comércio global e da emergência da China como novo polo de poder — inclusive militar —, todo o sistema político-partidário europeu acusa rachaduras e falhas estruturais, ou mesmo sinais explícitos de erosão.

Uns partem...
Não por acaso, então entre as vítimas do terremoto siglas históricas, que imprimiram sua marca na história do século 20. Na França, berço da noção contemporânea de república, saiu de cena o Partido Comunista, que emergiu como núcleo da esquerda ao fim da ocupação nazista e exerceu influência eloquente nos círculos intelectuais. O Partido Socialista, que ocupou o vácuo, enfrenta o risco de “rebaixamento” para a categoria de força de porte intermediário. No outro flanco do espectro, a direita gaullista perde a fisionomia: troca de líderes e de nomes em busca da sobrevivência. O cenário é semelhante na Itália, onde não restam sequer as siglas históricas dos comunistas e democratas-cristãos. Na Alemanha, o Partido Social Democrata (SPD), contemporâneo de Karl Marx, agarra-se ao patamar eleitoral dos 10% a 20%, trajetória que se anuncia também para a União Democrata Cristã (CDU), da chanceler Angela Merkel — ambos ameaçados de ver questionado o status de volkspartei (“partido de massas”).

....outros chegam
Nos três casos, ganham terreno as formações da nova direita ou extrema-direita, chamada habitualmente de “populista”pelos porta-vozes do establishment, sejam eles de esquerda ou de direita. Também os ecologistas crescem nas urnas e nas pesquisas, embalados pelo assombro da opinião pública com os efeitos imponentes da mudança climática. Mesmo no Reino Unido, a maioria sólida conquistada pelo premiê Boris Johnson para consumar o Brexit esconde a realidade de que o Partido Conservador foi o escolhido por cerca de um terço dos eleitores, apenas, e venceu a eleição de dezembro graças ao sistema distrital, que drena a representação dos partidos menores.

Novo tabuleiro
Assim como se esfacela o castelo político e socioeconômico representado pelo imponente complexo de edifícios da UE, em Bruxelas, as linhas de falha geológicas se irradiam pelo mapa-múndi que seguidas gerações aprenderam nos livros escolares e nos tabuleiros de jogos como o War. É o que se evidencia no Oriente Médio, onde as fronteiras atuais foram traçadas no período entre as duas guerras mundiais do século 20 como resposta à implosão do Império Otomano, do qual ficou como herdeira a atual Turquia. As fraturas estão à mostra nas duas décadas de instabilidade vividas pelo Iraque, na guerra civil endêmica instalada na Síria e na Líbia desde as revoltas árabes de 2011, nas transformações sociais em curso na Arábia Saudita e em outras monarquias ou na desagregação do Iêmen. Mas é no conflito palestino-israelense que essa transfiguração se expressa com maior eloquência. Nas próximas semanas, o premiê Benjamin Netanyahu joga nas urnas bem mais do que a própria sobrevivência política: sua vitória será aval para o plano de anexar a Israel a porção mais fértil e populosa da Cisjordânia. Sem ela, a Palestina soberana se resume ao deserto, e a “solução de dois Estados” ganha contornos de miragem.