Preocupados com a internacionalização dos conflitos na Líbia e com a ameaça de o país se tornar uma “segunda Síria”, líderes de 11 países se comprometeram a respeitar o embargo de armas decretado pelas Nações Unidas há oito anos e a não intervir em assuntos internos do país. Os líbios são castigados pela violência e por disputas pelo poder protagonizadas por dois grupos rivais desde a queda do regime de Muammar Kadhafi, em 2011 (Leia quadro).
Segundo o secretário-geral da ONU, António Guterres, os líderes, reunidos ontem em Berlim, coincidiram, em uma declaração conjunta, em “que não há uma solução militar para o conflito”. “Não posso enfatizar quão importante é esse compromisso, vindo inclusive de países que estão mais envolvidos do que outros na Líbia”, enfatizou. “Todos os participantes se comprometeram a renunciar à ingerência no conflito armado ou nos assuntos internos da Líbia”, completou Guterres.
Há dúvidas, porém, quanto ao alcance das intenções, já que os dois adversários diretos da guerra civil — Fayez al-Sarraj, chefe do Governo de Unidade Nacional (GNA), e seu rival, Khalifa Haftar —, se negaram a participar da conferência de Berlim. Para a chanceler alemã, Angela Merkel, o grupo — composto por representantes de Rússia, Turquia, França, Alemanha, Reino Unido, entre outros — de um “pequeno passo à frente”. A anfitriã, porém, reconheceu que resta muito a fazer para conseguir paz na região.
Chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov admitiu que, embora a conferência tenha sido “muito útil”, persiste um abismo entre os dois grupos em disputa. “Está claro que ainda não conseguimos iniciar um diálogo sério e estável entre eles”, disse. Com os turcos, a Rússia desempenha um papel-chave na Líbia. A última trégua, em vigor desde 12 de janeiro, se deu por iniciativa dos dois países.
Ancara apoia militarmente o GNA e suspeita-se que Moscou esteja do lado de Haftar, com Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Para um cessar-fogo permanente, os participantes da cúpula selaram o compromisso de respeito ao embargo às remessas de armas para a Líbia, decretado pela ONU em 2011, mas que, em grande medida, é letra morta até então.
Em outubro, a Anistia Internacional criticou a postura de alguns países. “A comunidade internacional deve defender o embargo de armas da ONU que Turquia, Emirados Árabes, Jordânia e outros países violaram de forma flagrante”, disse, à época, o investigador da Anistia Brian Castner. Segundo a entidade, há “um desprezo sistemático pelo direito internacional, impulsionado pelo fornecimento contínuo de armas a ambas as partes do conflito”.
Missão internacional
Uma reunião entre representantes militares dos dois grupos rivais deve ser realizada em breve, apesar de episódios de enfrentamento às vésperas da cúpula. No sábado, o marechal Haftar bloqueou as exportações de petróleo líbio, a única fonte de renda do país. A receita da commoditie vai para o GNA, reconhecido pela ONU, e, então, é distribuída pelo país. Como reação, Fayez al-Sarraj solicitou o envio de uma “força militar internacional”, sob os auspícios da ONU, para “proteger a população civil”.
Vários líderes, incluindo chefes de governo italiano e britânico, disseram, ontem, estar abertos à ideia de enviar uma missão internacional para garantir o cessar-fogo permanente, contanto que seja aprovada pelos dois grupos. Desde a retomada dos enfrentamentos, em abril de 2019, mais de 280 civis e 2 mil combatentes foram mortos. Segundo a ONU, mais de 170 mil habitantes foram deslocados.
Entenda a crise
Entenda a crise
» A guerra civil
Grupos rivais travam uma disputa pelo poder desde a revolta que derrubou e matou o ditador Muammar Kadafi, em 2011. De um lado, está o Governo de União Nacional (GNA), com sede em Trípoli, liderado por Fayez Al-Sarraj e formado em 2016, após um acordo mediado pela ONU. Do outro, com liderança baseada no leste do país, está o grupo liderado por Khalifa Haftar. Vários países, incluindo os vizinhos Egito, Emirados Árabes e França, elogiam o militar pela ofensiva contra o islã, e alguns oferecem apoio militar e logístico a Haftar, que tem sob seu controle a maior parte do território líbio.
» Disputa na capital Em abril passado,
forças de Khalifa Haftar lançaram uma ofensiva para expulsar, de Trípoli, o Governo de União Nacional. Fontes acreditam que o objetivo do militar era conseguir uma vitória rápida na capital e apresentá-la à comunidade internacional. Houve, porém, forte mobilização de milícias ocidentais poderosas, que o classificam como novo ditador da Líbia. A batalha em Trípoli está há meses estancada.
» Interesses turcos
Com Moscou, Ancara patrocina o último cessar-fogo na Líbia, que entrou em vigor em 12 de janeiro. Segundo analistas, a Turquia tenta minimizar a influência dos rivais regionais Egito e Emirados Árabes na região. Também tem interesses econômicos, já que selou com o GNA um acordo marítimo para apoiar suas reivindicações sobre reservas de hidrocarbonetos no Mediterrâneo oriental, em que enfrenta a oposição de Grécia, Egito, Israel e Chipre.
» Interesses russos
A Rússia considera a Líbia uma oportunidade “comercial, mas também geoestratégica e simbólica”, segundo Jalel Harchaoui, do Instituto Clingendael, em Haia. De acordo com o especialista, a presença dos russos na Líbia permitiu a Moscou minimizar a influência da Otan e da União Europeia no norte da África e a mostrar que pode ter êxito onde o Ocidente tem falhado.
» Preocupação europeia
Os europeus temem que a internacionalização crescente do conflito possa converter a Líbia em uma “segunda Síria”. Eles querem reduzir a pressão migratória que emana da costa líbia e as ameaças jihadistas.