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Revolta embaralha sucessão presidencial no Chile

Dois meses de protesto com forte tom contrário aos políticos colocaram o governo do presidente Sebastián Piñera contra as cordas e embaralharam o cenário eleitoral chileno. Potenciais candidatos evitam se apresentar como porta-vozes das reivindicações para não parecerem oportunistas, mas analistas colocam alguns nomes em ascensão em meio à crise. Dois deles, considerados fortes postulantes a substituir Piñera, vêm de lados opostos do espectro político. O jornal O Estado de São Paulo falou com ambos sobre os protestos e a perspectiva de chegarem à presidência. Beatriz Sánchez, de 49 anos, jornalista sem experiência em administração pública, foi a grande surpresa na última eleição, em 2017, ao obter 20,2% dos votos e quase chegar ao segundo turno. Antiga eleitora dos socialistas, decidiu formar um grupo mais à esquerda e tornou-se o nome mais consolidado entre os progressistas. No poder, seria mais radical no aumento do papel do Estado. Manuel José Ossandón é um técnico agrícola de 57 anos que disputou a última eleição primária do Renovação Nacional, de direita, partido do presidente. Perdeu a indicação para Piñera e voltou a se concentrar em seu mandato de senador. Dono de um discurso considerado populista por seus inimigos, "Cote" Ossandón baixou o próprio salário quando o Parlamento passou a discutir a questão. É o nome conservador com maior potencial eleitoral. Os atos que abalaram o governo começaram em outubro, contra um aumento de R$ 0,16 no preço do metrô de Santiago. Logo, os manifestantes passaram a exigir mudanças em aposentadoria, educação, saúde e na concessão dos serviços públicos em geral. Acuado, Piñera colocou o Exército na rua, disse estar em guerra e decretou estado de emergência por 8 dias. A repressão encorpou o movimento e obrigou o governo a uma série de recuos. A popularidade de Piñera bateu em 12%, o que o levou a sua maior concessão, que tende a facilitar as demais: abrir as portas a uma nova Constituição, medida elogiada tanto por Beatriz quanto por Ossandón. Com este passo, após décadas de pressão contra a Carta de 1980 - escrita sob governo de Augusto Pinochet -, Piñera retoma fôlego para terminar seu mandato, que vai até 2021. O país não tem reeleição. Desde a redemocratização, em 1990, centro-direita e centro-esquerda se alternam no poder e mantêm uma linha econômica estável. Como os protestos carregam uma forte revolta contra o Estado e o sistema político, especialistas veem como possíveis beneficiários da crise um populista, alcunha com a qual Ossandón diz não se importar, ou de um nome desassociado dos partidos tradicionais, caso de Beatriz. Entrevista: 'O país tinha uma sociedade que explodia para dentro Entrevista com Beatriz Sánchez, representante do bloco de esquerda Frente Ampla: Os protestos no Chile são inexplicáveis para quem só vê indicadores econômicos. O que ocorreu? Somos o 15.º país mais desigual do mundo e um dos mais desiguais da América Latina, juntamente com o Brasil. Temos uma acumulação obscena de riqueza em 1% da população e alguns dos índices de depressão mais altos do mundo, segundo a OMS. Temos também altas taxas de suicídio entre crianças e adolescentes. Muitos estudos relacionam altos índices de endividamento com doenças mentais. Certos números mostram o Chile como aluno mais comportado do bairro. Quem pesquisar mais, verá que essa revolta era anunciada. Houve manifestações explosivas em 2006 e 2011, mas esta é realmente outra coisa. Tínhamos uma sociedade que explodia para dentro. Isso mudou. Segundo o Banco Central, no ano passado, 73% do que uma família recebia eram dedicados a dívidas. Isso explica por que países mais desiguais que o Chile, como Brasil, não passam por uma revolta como esta? Temos uma classe política pequena, que pertence a uma elite muito concentrada. Tanto na centro-esquerda quanto na centro-direita. A nossa elite vem de quatro ou cinco colégios e duas universidades de Santiago. São basicamente homens. Tínhamos uma sensação, apesar de o Chile ter todos esses problemas, de que havia certo respeito às instituições. Mas há uns cinco anos foram aparecendo altos índices de corrupção, casos em que empresários praticamente entregavam leis que deveriam ser aprovadas aos parlamentares. Muitas instituições começaram a rachar, incluindo os carabineros (polícia militar), que considerávamos incorruptíveis. Percebemos que são corruptos como a polícia de outras partes do mundo. Um populista pode chegar ao poder no Chile? Ninguém sabe o que vai acontecer depois desse movimento. A direita tenta despolitizar a crise, falar que todos os políticos são o problema. Isso talvez não pertença a um partido político, mas são demandas de um movimento político. Se as pessoas não acreditarem que há uma saída política, corremos o risco de chegar a um lugar imprevisível. Mas, se promovermos a ideia de que é preciso mais participação política, a consequência será diferente. Não há soluções fáceis. A solução passa por uma nova Constituição. Apesar das concessões feitas, Sebastián Piñera recebe novas demandas, e a falta de um líder entre os manifestantes contribui para isso. Há outra alternativa? Saídas políticas para mobilizações anteriores tiveram péssimo resultado. Em 2006 e 2011, houve acordos populares em que as pessoas ficaram muito decepcionadas. O pior que poderia acontecer é aparecer uma liderança popular que diga "represento a população". Manifestantes dizem que a revolta poderia ter sido detonada também num governo de esquerda. O protesto é contra o quê? As duas grandes mobilizações dos últimos tempos ocorreram contra o mesmo governo, de Sebastián Piñera. Isso não é casualidade. Não gostei dos governos da Concertação e da Nova Maioria (que levaram o Partido Socialista ao poder). Votei neles e não fizeram nada para evitar o que está ocorrendo. Mas o que Piñera vinha fazendo era retirar os poucos direitos que haviam sido conquistados no governo anterior. Essa é uma explosão contra o modelo neoliberal, mas as pessoas não falam assim, porque falar de modelo neoliberal é algo difuso. Estão reclamando porque se cansaram dos abusos e não conseguem chegar ao fim do mês. Faltou vontade ou competência aos governos de centro-esquerda para mudar este cenário? As duas coisas. A Constituição é uma amarra e está fechada sobre si mesma. É preciso mudá-la. Fazer mudanças profundas é muito difícil. Mas também é verdade que a Concertação, nos seus anos de governo, fez um pacto transicional com a ditadura. A Concertação tirou muita gente da pobreza. O que vemos nas mobilizações não são as pessoas mais vulneráveis, mas a classe média, que está sufocada. Se a sra. enfrentasse uma onda de protestos como essa na presidência, como reagiria? Precisamos deixar que as pessoas tomem decisões no Chile, estimular a participação. O governo tentou apagar com querosene um incêndio. Um ministro da Economia, quando as pessoas reclamaram que o bilhete de metrô subiria em determinado horário, recomendou que elas acordassem mais cedo para pagar menos. Há alguns meses, o subsecretário de Saúde disse que as pessoas gostam de levantar às 5 horas da manhã e fazer fila nos postos de saúde porque buscam vida social. Outro, questionado sobre a razão de tudo estar subindo no Chile, pão, leite e serviços básicos, menos as flores, aconselhou os cidadãos a comprar mais flores. Isso é apagar o fogo com querosene. É não ter um pé na rua e ver o que acontece no Chile. Entrevista: Sempre separei populismo de demagogia Entrevista com Manuel Ossandón, senador do partido de direita Renovação Nacional: Boa parte dos protestos é contra a classe política e uma das exigência era a redução do salário dos políticos. O que os políticos fizeram de errado? É uma revolta contra o sistema, contra o Estado. As pessoas estão frustradas e todos são alvo, não apenas a classe política. Existe uma elite que continua abusando e tirando proveito dos privilégios, enquanto as pessoas seguem com aposentadorias e salários miseráveis. Antes que o Parlamento chegasse a uma decisão sobre os salários, decidi baixar o meu sozinho. É surpreendente que não haja bandeiras de partidos nos protestos. Algum grupo político tentou se apropriar das demandas? Quem tentar fazer isso está errado. Políticos e seus partidos são parte do problema. É uma crise cultural, não é apenas uma manifestação política. É por isso que essa manifestação não tem um líder, nem uma solicitação clara. O que estamos exigindo é mudar a maneira de fazer as coisas: melhorar a transparência, a alocação de recursos e a rastreabilidade. Este cenário anti-Estado e antissistema pode favorecer a chegada ao poder de um populista? Seria necessário definir o que é populismo. Sempre separei o populismo da demagogia. Se alguém trabalha na rua, com sucesso comprovado, e o chamam de populista, não vejo problema. Além disso, aqueles que dirigiram o Chile e falam apenas à elite representaram precisamente o contrário. No meu país, o populismo está associado a não entender algo, a questões que são temidas ou não compreendidas. Seus rivais o consideram um populista, pelo menos se compararmos com a maior parte da classe política chilena. Como se definiria? Ser populista e desleal, como me chamam, sempre significou para mim estar com aqueles que têm menos. Prefiro estar nesse caminho e não na política da estratosfera. Gostaria de destacar que fui prefeito durante 20 anos. Ser prefeito permite que você esteja em uma batalha na primeira linha da pobreza e da realidade cotidiana. Essa experiência não tem preço, porque hoje eu posso falar com propriedade das carências das pessoas. Alguns analistas interpretam essa revolta como um movimento contra o neoliberalismo. Mas, nas ruas, as pessoas dizem que ela poderia ter explodido com os socialistas Michelle Bachelet ou Ricardo Lagos. É correto? Isso é o fim de uma etapa e vai muito além de uma crítica ao modelo neoliberal. Acredito no crescimento econômico, mas com uma distribuição muito melhor. Crescimento sem paz social não funciona. As pessoas devem ter sua parte nos ganhos de um país. É claro que o modelo deve ser corrigido. Por que a direita chilena não consegue se desconectar da sombra de Augusto Pinochet? O sr. vê coisas boas no governo dele? Ninguém está mais pensando em Pinochet. As pessoas se cansaram da maneira de se relacionar com o Estado, com instituições, com empresas. Estamos diante de uma mudança muito profunda e transversal e vejo essa mudança com otimismo. Aqueles que ainda estão presos lá atrás continuarão arrastando as barras do passado. Hoje, devemos trabalhar contra a desigualdade, os abusos, buscar o desenvolvimento inclusivo e a igualdade. Hoje, o país exige que falemos com todos, para fazer pontes. Se o sr. se tornar presidente e algo semelhante acontecer em seu governo, como negociaria? Primeiro, acredito que o presidente Sebastián Piñera não seja o único responsável pelo que aconteceu. Vi autoridades do governo desconectadas da realidade e da rua. Devemos entender que a raiz do problema existe e não estamos vivendo apenas um problema de ordem pública. Apostar no desgaste do movimento social e desacreditá-lo foi uma estratégia terrível. A chave para sair de um problema como esse é a transversalidade e o senso comum. As pessoas não querem destruir o Chile, as pessoas querem viver em paz. O sr. teria colocado o Exército na rua para controlar os protestos? Para controlar os protestos, inicialmente, não. Mas sugeri várias vezes concentrar os militares na infraestrutura essencial do Chile. A destruição ocorrida em nosso país é inegável, mas devemos trabalhar juntos para avançar e melhorar o que tínhamos. O que acontecerá com uma Constituinte? Uma nova Carta garantiria maior controle sobre as concessões à iniciativa privada? Uma nova Constituição, nascida na democracia, será importante. Passaremos para um modelo que coloque as pessoas no centro, que devolva a dignidade, que seja verdadeiramente participativo, que quebre abusos e desigualdades, onde o Estado as proteja e as defenda. Mas também devemos crescer economicamente. Acredito no livre mercado, mas ele não pode ser autorregulamentado. Chegou a hora de distribuir a riqueza para todos os chilenos e isso não significa tirar de um para dar aos outros. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.