Horas antes dos ataques do Irã às duas bases dos Estados Unidos no Iraque, o clima de comoção em Kerman (sudeste do Irã) e as declarações de autoridades iranianas tinham elevado o suspense ante uma provável resposta do país à execução do comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária. Na cidade natal do general Qasem Soleimani, um tumulto em circunstâncias ainda não esclarecidas deixou ontem 56 mortos — 35 homens e 21 mulheres — e 213 feridos.
Enquanto o funeral ocorria, o chanceler iraniano, Mohammad Javad Zarif, advertia que o “assassinato (...) abriu os portões para um repulsivo curso de ação que poderá assombrar todo o planeta”. O ministro previu que os EUA receberão uma “resposta definitiva e decisiva”.
Em Washington, o governo de Donald Trump justificava a morte de Soleimani. O governo do republicano anunciou que o “monstro” preparava um “grande ataque iminente” contra interesses americanos, admitiu que aguardava uma retaliação e reafirmava a permanência das tropas no Iraque. “Não foi tomada uma decisão de deixar o Iraque. Ponto”, garantiu Mark Esper, secretário de Defesa dos Estados Unidos.
O aumento da tensão no Oriente Médio mudou os planos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que suspendeu o treinamento de soldados iraquianos no combate ao Estado Islâmico. O secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã, Ali Shamkhani, disse que os militares do país discutiram 13 cenários de vingança. Ele assegurou que mesmo o mais fraco representaria um “pesadelo histórico” para os norte-americanos. Também ontem, os 233 membros do Parlamento iraniano aprovaram, por unanimidade, uma moção que qualifica de “organização terrorista” as forças dos EUA baseadas no oeste da Ásia.
O chefe do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, Hossein Salami, discursou em Kerman e avisou: “Nossa vingança será dura, forte, decisiva e final. Vamos incendiar o lugar que eles (os norte-americanos) adoram, e eles sabem onde é”. “As sementes do ódio pelos EUA foram plantadas no coração dos muçulmanos”, acrescentou, ao reforçar que o processo de expulsão dos Estados Unidos do Oriente Médio começou.
Ciberataques
Professora de direito internacional e comparado da Universidade de São Paulo (USP), Maristela Basso lembrou à reportagem que, apesar das ameaças, Teeerã não tem poderio militar para se contrapor a Washington. “O uso da internet aparece como a opção mais tentadora para uma retaliação. Ataques cibernéticos podem provocar danos sérios às estruturas de gás, de óleo e de eletricidade, bem como aos sistemas financeiros, de informação e de inteligência dos Estados Unidos e países aliados”, explicou.
Oficiais do governo norte-americano defenderam a decisão de Trump de ordenar o bombardeio da comitiva de Soleimani, na sexta-feira, em uma estrada anexa ao Aeroporto Internacional de Bagdá. Sem fornecer detalhes, o presidente republicano declarou à imprensa, no Salão Oval da Casa Branca, que a eliminação do general “salvou muitas vidas” e que o iraniano planejava “um grande ataque”.
Também retirou a ameaça de bombardear sítios históricos e culturais do Irã. “Pensem: matam nossa gente, explodem nossa gente e, em seguida, devemos ser muito gentis com suas instituições culturais. Mas estou de acordo com isso”, disse Trump. “Saibam que, se essa é a lei, eu gosto de obedecer a lei”, destacou.
Para Karen Greenberg, diretora do Centro de Segurança Nacional da Fordham University School of Law (em Nova York), os EUA cruzaram uma linha de proibição de assassinatos. “O direito internacional prescreve uma definição muito restrita de assassinatos permitidos em tempos de guerra. O governo Trump não reconheceu uma guerra e classificou a ação de ‘legítima defesa’. A Casa Branca quer ver isso como uma estratégia ligada ao contraterrorismo. É algo complicado, pois o general Soleimani era uma figura importante de um Estado soberano”, afirmou ao Correio.
Richard Falk, professor de direito internacional da Universidade de Princeton, concorda que as circunstâncias do assassinato de Soleimani parecem estabelecer um “claro caso de conduta ilegal”.
Ele sustenta não haver indícios de envolvimento do general em um complô que representasse risco iminente para soldados e diplomatas dos EUA. “Tudo o que sabemos sugere o uso internacional de força em violação à soberania do Iraque. Isso constitui um crime de guerra.”
Vladimir Putin visita Al-Assad na Síria
Enquanto o general Qasem Soleimani era sepultado em Kerman, a 1.994km dali, em Damasco, uma visita-surpresa causava apreensão na geopolítica do Oriente Médio. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, se reniu com o colega sírio, Bashar Al-Assad, em um centro de forças russas. Além de arquiteto da estratégia militar do Irã no Oriente Médio, Soleimani era grande aliado da Síria na tentativa de pôr fim à guerra civil que devasta a nação desde 2011. “Durante o encontro com Al-Assad, Putin declarou que, hoje, podemos constatar o imenso caminho que foi percorrido em direção à restauração do Estado sírio e de sua integridade territorial”, disse Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin. Ambos assistiram a uma apresentação do comandante das tropas russas na Síria.