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'O ano mais acelerado da minha vida'

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Brasília foi o destino algo insólito de uma alemã-oriental que, na virada de novembro de 1989, quando o Muro de Belim veio abaixo, não fazia oposição ao regime comunista ; mas acreditava, como a maioria dos cidadãos que viviam do ;lado de lá; da fronteira interalemã, que era possível democratizar o socialismo. Sabine Plattner chegou ao Brasil seis meses depois do torvelinho que mudou a história do século 20 como uma rajada de vento faz virarem as páginas de um livro há tempos marcado no mesmo ponto. Hoje, é a diretora do Goethe Zentrum, que não apenas difunde na cidade o conhecimento do idioma alemão, mas promove a cultura do país que, nos últimos 30 anos, reconstrói sua identidade sobre a herança legada por quatro décadas de separação, no âmbito da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a hoje extinta União Soviética.

Como tem sido desde 1989, os dias do início de novembro foram tempo de reflexão e emoções fortes para Sabine. Ao longo da entrevista que concedeu ao Correio, mais de uma vez a voz ficou como sufocada. Para quem, como ela, ;não era da oposição; ao regime comunista, a mudança repentina e a reunificação da Alemanha, menos de um ano depois, foram o bastante para que o país da infância e da juventude como que evaporasse num átimo. De lá para cá, da distância definida pela vida reconstruída no Brasil, ela acompanhou os passos da construção do novo país, e hoje se diz ;preocupada e envergonhada; pela ascensão da extrema direita justamente nas regiões que a integraram o ;primeiro Estado de operários e camponeses; na terra natal de Karl Marx.

Como você se lembra daquela noite de 9 de novembro?
Acho que a pergunta está errada. Porque, para entender o que aconteceu naquela noite, é preciso saber o que aconteceu ao longo de 1989 e, na verdade, o que aconteceu desde 1985, quando (Mikhail) Gorbachov assumiu poder (na União Soviética). É uma coisa que está faltando nas reportagens que eu tenho lido esses dias, no Brasil e na Alemanha. Gorbachov foi fundamental: sem ele nada teria sido possível, qualquer manifestação teria sido reprimida. E foi ele que, em 7 de outubro, quando a DDR (sigla oficial, em alemão, da Alemanha Oriental) completou 40 anos, disse que ;quem chega atrasado é punido pela história;. Eu tenho refletido muito sobre isso, e 1989 acho que foi o ano mais acelerado do século 20, ou pelo menos da minha vida. A gente assistia ao noticiário de manhã, de tarde e de noite ; porque a cada duas horas tinha uma reviravolta. No fim de julho, a Hungria abriu a fronteira e fugiram milhares (de alemães-orientais) para a Áustria. Depois, foi a embaixada em Praga, depois na Polônia. Aí veio o 40; aniversário da DDR, em 7 de outubro; no dia 18, (Erich) Honecker não era mais o líder do regime; em 4 de novembro teve a maior manifestação da história da DDR, com um milhão de pessoas ; Berlim tinha 1,2 milhão de habitantes. E no dia 9 caiu o muro. E o verdadeiro milagre daquela noite é que, apesar de os soldados da fronteira terem ordem de atirar para matar, nem um único tiro foi disparado.

Você estava em Berlim?
Eu estava em Bernau, que é na região de Berlim. Não fui para o muro naquela noite. Não sou de multidões e também não estava tão ansiosa assim para viajar. Eu não era de oposição ao sistema. Eu fui pela primeira vez algumas semanas depois, como intérprete eu já tinha tido a oportunidade de ir para o lado ocidental.

Qual foi a sua impressão sobre esses dias?
Eu posso falar da minha percepção, e preciso dizer que eu não era oposição ao regime da DDR. As pessoas que faziam oposição estavam na clandestinidade, nas igrejas, as pessoas que iam às manifestações tinham uma urgência muito maior. A vontade delas era poder viajar, era ter liberdade de expressão. São bandeiras que eu entendo e compartilho hoje. Na época, eu tinha informações diferentes, faltava espírito crítico, mas hoje eu sei que o muro tinha que cair. Você não pode prender um povo, não pode impedir um povo de manifestar a opinião de forma pacífica e dentro das leis. As pessoas que foram para o muro naquela noite, a percepção que eu tenho é de que a maior parte, naquele momento, não queria derrubar o regime comunista. Tenho a impressão de que a maior parte ainda acreditava que seria possível democratizar o regime nos moldes do que o Gorbachov vinha fazendo na União Soviética, e que na DDR era bloqueado. Tinha uma frase que eu ouvia desde os 7 anos de idade, que ;aprender com a União Soviética é aprender a vencer;. A partir de 1985, essa frase era ;proibida; ; não se podia proibir oficialmente, mas ela era indesejável.

Mas isso mudou mais rápido do que se imaginava...
Pelo que eu me lembro, a primeira vez que a ideia da reunificação foi lançada foi em meados de dezembro, pelo (então chanceler alemão-ocidental) Helmut Kohl. A partir daí, o slogan das manifestações, que até então era ;nós somos o povo;, mudou para ;nós somos um povo;. As coisas se aceleraram muito, e em menos de um ano unificar dois países, coinsiderando que ainda faltava conseguir o aval das quatro potências vencedoras da 2; Guerra e da Polônia... é um pequeno milagre, acho.

Você acompanhou esse processo por lá até quando?
Até abril de 1990. No fim do mês eu já estava no Brasil, antes da união monetária. Tive que fazer o câmbio dos meus parcos marcos (orientais por ocidentais) no mercado paralelo, na base de um por quatro ou um por cinco. Depois da união monetátria teria sido um por um, mas eu estava grávida e tinha que viajar.

Como foi acompanhar aquele processo de longe?
Minha mãe está lá, no mesmo bairro de Berlim onde a gente sempre morou. Eu demorei cinco anos para voltar pela primeira vez. Fui para o mesmo prédio onde meus pais moravam, onde eu morei quando era adolescente. E foi engraçado, porque eu não me senti em casa. Essa sensação, para mim, está muito relacionada a cheiros, cores, a uma percepção mais sensorial. E até isso tinha mudado: os produtos de limpeza, as tintas. De lá para cá, eu tenho ido com frequência, percebo as mudanças que estão acontecendo. Ainda tem muros nos corações e nas cabeças, ainda têm desigualdades a serem superadas, eu acredito que ainda vai levar mais uns 30 anos para isso. Estou feliz pela minha geração, que teve a oportunidade de reconstruir a vida, e triste pela geração dos meus pais, que, em grande parte, teve muita dificuldade para se adaptar.

E a Alemanha de hoje, com a ascensão da ultradireita?
Essa é uma coisa que me preocupa muito e me deixa muito envergonhada. Esse partido AfD, além das tendências xenófobas, tem também tendências antissemitas, coisas que são imperdoáveis na Alemanha de hoje. Estou feliz por ver que a política do governo alemão combate isso. Mas quando se analisam essas tendências de extrema direita, especialmente no leste e especialmente na Saxônia... eu nasci lá, vivi até os cinco, seis anos, depois fiz faculdade em Leipzig. Conheço relativamente bem e sempre volto para lá. Eu posso dizer que já na década de 1980, em Dresden, havia um extremismo de direita. Tendências xenófobas, de intolerância. Uma vez, eu fui para lá como torcedora de um time de futebol de Berlim e quase fui espancada, que era inimaginável na DDR. Eu não consigo entender por que essa tendência está tão forte em Dresden. A cidade prosperou muito, e todos aqueles argumentos, de que a população não tem persectivas, não teve chances, isso não se aplica a Dresden, que é considerada o Sillicon Valley do lado oriental ou talvez até da Alemanha. O nível de educação na Saxônia é muito bom, ela tem vencido regularmente, nos últimos anos, o ranking de resultados das escolas. Não é falta de conhecimento, não é falta de emprego, não é falta de renda.

Como é a sua lembrança da infância e juventude na Alemanha Oriental?
Eu tive a oportunidade, quando estudava, de viajar para o Leste Europeu: Hungria, Tchecoslováquia, Polônia, União Soviética várias vezes. Do ponto de vista das condições de vida materiais, na DDR a gente estava bem, comparado com eles. Claro que, comparado com o ;milagre econômico; do lado ocidental, proporcionado pelo Plano Marshall e pelo fato de as potências ocidentais terem aberto mão das compensações de guerra, comparado com isso a gente vivia na penúria. Mas eu viajava uma vez por ano com os meus pais, duas vezes por ano para colônia de férias, tinha comida em casa todos os dias ; não tinha banana todos os dias, mas tinha maçã sempre, frutas. Tinha boa assistência à saúde e educação gratuita. E não só isso: quando eu entrei na faculdade, foi introduzida uma bolsa de estudos, para que os pais não precisassem custear o alojamento (10 marcos) e o almoço no restaurante universitário (80 centavos). A bolsa era de 200 marcos. Em Berlim a gente vivia melhor do que no interior do país, mas fome ninguém passava. Claro que a falta de democracia, de liberdade de expressão, é uma coisa que eu nunca mais quero sentir.


Defesa da democracia e da liberdade

Diante da falta de entusiamo com o 30; aniversário da queda do Muro do Berlim e do clima de discórdia entre os aliados da época da Guerra Fria, a chanceler alemã, Angela Merkel, optou por ressaltar a importância da democracia e da liberdade na celebração do evento histórico. Dentro da Capela da Reconciliação, um dos lugares históricos e emblemáticos da capital, Merkel destacou que os ;os valores fundadores da Europa; precisam ;ser sempre defendidos; e que o continente deve se ;comprometer com a democracia, a liberdade, os direitos humanos e a tolerância.; ;O Muro de Berlim pertence à história e nos ensina que nenhum muro que deixa as pessoas de fora e restringe a liberdade é tão alto ou tão comprido que não se possa ultrapassar;, disse a chanceler, natural da Alemanha Oriental, que iniciou sua carreira política após a queda da Cortina de Ferro. No Portão de Brandenburgo, milhares de pessoas comemoram a data em meio a concertos, discursos e show pirotécnico.