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Prêmio controverso

Dois europeus são os escolhidos, apesar de críticas de membros da Academia Sueca ao predomínio do eurocentrismo. Um dos laureados é alvo de polêmicas por defender um acusado de genocídio

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 11/10/2019 04:15
O austríaco Peter Handke, elogiado pela obra e criticado por defender o ex-líder sérvio Slobodan Milosevic


Depois de prometer se afastar do eurocentrismo e da preferência masculina, a Academia Sueca premiou ontem dois europeus, um deles homem, com o Nobel de Literatura. A polonesa Olga Tokarczuk e o austríaco Peter Handke foram os ganhadores das nove milhões de coroas suecas (830 mil euros). Depois de suspender a entrega do prêmio no ano passado, a Academia escolheu dois autores: ela referente a 2018; ele, a 2019.

A escolha de Handke, especialmente, teve forte repercussão. O dramaturgo e romancista, autor do roteiro dos filmes Asas do desejo e O medo do goleiro diante do pênalti, ambos dirigidos pelo alemão Wim Wenders, causou polêmica quando se solidarizou com o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, acusado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e contra a humanidade na Guerra da Bósnia, nos anos 1990. Autor de mais de 40 livros, entre romances, peças, ensaios e roteiros, o escritor de 76 anos foi premiado ;pelo trabalho influente que, com engenhosidade linguística, explorou a periferia e a especificidade da experiência humana;, segundo a nota da Academia Sueca.

No Brasil, a Estação Liberdade publicou Don Juan (narrado por ele mesmo) e A perda da imagem ou através da Sierra dos Gredos. Para este ano, a editora promete Ensaio sobre o maníaco dos cogumelos. Boa parte da obra de Handke é marcada por um diálogo com o cinema e traz linguagem cinematográfica.

Surpresa
O próprio autor ficou surpreso com a premiação, já que havia declarado, em 2014, que o Nobel devia ser abolido, porque seria uma falsa canonização da literatura. Em entrevista à imprensa austríaca, ele disse que a escolha foi ;corajosa;. O filósofo esloveno Slavoj Zizek disse que a escolha da academia aponta que Handke tem razão. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Zizek lamentou a premiação e provocou, ao declarar que ela representraria a Suécia de hoje: ;Um apologista de crimes de guerra ganha o Nobel, enquanto o país inteiro participa do assassinato de um herói verdadeiro do nosso tempo, Julian Assange;.

Em resposta às críticas, associadas principalmente às posições do escritor sobre a Bósnia e Kosovo, o acadêmico Anders Olsson saiu em defesa do laureado. Ele disse ao jornal sueco Dagens Nyheter que o Nobel ;é um prêmio literário, não um prêmio político, e foi em relação aos méritos literários que a academia fez a escolha;. Olsson revelou ainda que, durante as discussões, a questão política surgiu, mas os acadêmicos não se deixaram levar pela controvérsia.

A premiação de Olga Tokarczuk, 57, foi menos controversa. Ativista e voz crítica à extrema direita que domina a política polonesa, ela foi premiada ;pela imaginação narrativa que, com paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida;. Olga é autora de best-sellers na Polônia e ganhou, em 2018, o Man International Booker Prize com a tradução parfa o inglês de Bieguni (Flights), romance sobre uma seita que acredita no deslocamento como maneira de estar fora do alcance do mal.

No Brasil, a Tinta Negra publicou o romance em 2014, com o título de Os vagantes. O livro está esgotado e volta às prateleiras em nova edição da Todavia, com o título de Viagens. Está na agenda da editora, para novembro, Sobre os ossos dos mortos, narrativa cheia de realismo fantástico sobre uma possível intersecção entre o mundo dos homens e o dos animais. Olga ganhou duas vezes o Nike, prêmio polonês concedido anualmente ao melhor romance do ano: em 2008, por Os vagantes, e em 2015, por Os livros de Jacó, sobre dissidentes judeus no século 18.

Decepção
As escolhas decepcionaram os que apostavam no cumprimento da promessa de Anders Olsson, presidente do comitê da Academia para literatura. Ele havia declarado que, este ano, o Nobel teria um olhar mais diverso. ;Nós tivemos uma perspectiva da literatura muito eurocêntrica, e agora estamos olhando para o mundo inteiro;, acenou. Nas bolsas de apostas, já que não há lista prévia de indicados, circularam nomes como o da francesa Maryse Condé, originária de Guadalupe, o da russa Lyudmila Ulitskaya e o da canadense Margaret Atwood, autora de O conto da aia.

Dos 114 laureados até hoje, apenas 15 são mulheres, incluindo Olga Tokarczuk. Dessas, apenas uma, Toni Morrison, é negra. Do total de ganhadores, 29 escreviam em língua inglesa. Depois de um ano conturbado na Academia Sueca, havia expectativa de que as reformulações na maneira como o premiado é selecionado indicariam também maior diversidade, especialmente porque a confusão que minou a imagem da instituição envolvia, principalmente, personagens da cena literária internacional.

A confusão, que acabou nos tribunais, começou em 2017, quando o Dagens Nyheter publicou uma denúncia de 18 mulheres que acusavam de assédio e estupro o francês Jean-Claude Arnault, diretor de um clube de cultura em Estocolmo subvencionado pela própria Academia. Arnault era marido de Katarina Frostenson, poeta e membro da instituição encarregada de escolher os premiados. O diretor também foi acusado de influenciar a escolha do Nobel de Literatura por intermédio da mulher e de vazar os nomes dos laureados antes do anúncio oficial.


;Um apologista de crimes de guerra ganha o Nobel, enquanto o país inteiro participa do assassinato de um herói verdadeiro o nosso tempo, Julian Assange;
Slavoj Zizek, filósofo esloveno


;O Nobel é um prêmio literário, não um prêmio político, e foi em relação aos méritos literários que a academia fez a escolha;

Anders Olsson, integrante da Academia Sueca

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