Em 2013, o desemprego atingia 17 em cada 100 portugueses e a economia estava combalida pelos reflexos da crise da dívida. Entre 2011 e 2014, Portugal recebeu um resgate de 78 bilhões de euros da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, sob o compromisso de encampar austeridade fiscal, privatizações e reformas. Sob o governo socialista do primeiro-ministro António Costa, há quatro anos no poder, o desemprego despencou para 6,4%, o deficit minguou e o Produto Interno Bruto (PIB) voltou a crescer. É com esse cenário de otimismo que o Partido Socialista (PS, centro-esquerda), do premiê, chega às eleições parlamentares de hoje como favorito. As pesquisas indicam que Costa vencerá o pleito com cerca de 37% dos votos; votação insuficiente, no entanto, para a maioria absoluta no Parlamento. ;O PS será indicado pelo presidente da República (Marcelo Rebelo de Sousa) para formar o governo, mas terá de se apoiar numa aliança parlamentar com pelo menos um partido de esquerda;, explicou ao Correio Álvaro de Vasconcelos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa e professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
De acordo com Vasconcelos, a esquerda tem sabido responder ;à enorme inquietação; da classe média portuguesa, profundamente afetada pela crise de 2008 e pelas políticas de austeridade de inspiração neoliberal adotadas pela União Europeia e pela direita em Portugal. ;António Costa repôs os cortes nos salários e nas aposentadorias e reduziu o deficit público para mínimos históricos (0,5% em 2018). Sua política de rigor, com progresso social e defesa dos direitos humanos, seduziu o eleitorado;, admitiu.
Para José João Freitas Barbosa Pereira Coutinho, cientista político da Universidade Católica Portuguesa, é provável que o premiê negocie com a esquerda e com a direita em troca de governabilidade. ;O PAN (Pessoas-Animais-Natureza), ambientalista, pode fornecer os deputados que faltam ao PS para ter a maioria de 116 assentos. Também não se pode excluir que o PS chegue a um entendimento com o Partido Social Democrata (PSD), liderado por Rui Rio;, acrescentou. Rio, ex-prefeito do Porto (norte), se empenhou em uma campanha extremamente dura contra o PS, que agora se apresenta como mantenedor da ortodoxia orçamentária, um slogan da direita.
Durante a campanha eleitoral, António Costa reforçou que não desejava partidos à esquerda do PS no governo. ;Ele defendeu o compromisso parlamentar, mas não as coligações. Se o PS tiver a maioria hoje, se tornará o eixo do sistema partidário português e contará com ampla margem de negociação;, disse António Costa Pinto, professor de ciência política na Universidade de Lisboa e comentarista em emissoras de Portugal. Ele lembrou que, até 2015, existia uma tensão enorme entre o PS, o Partido Comunista Português (PCP) e o ;Bloco de Esquerda;.
;Por isso, apesar de os partidos de esquerda por várias vezes terem feito maioria no Parlamento, nunca houve compromisso entre eles. A sedução dos portugueses pela esquerda tem causas simples. O crescimento econômico e a política financeira do governo fizeram com que o PS alijasse a direita da bandeira do equilíbrio orçamentário e das ;contas certas;, ao mesmo tempo em que conseguiu devolver o poder aquisitivo e os direitos sociais aos portugueses, com acentuada redução do desemprego;, comentou Pinto. No fim das contas, a economia deverá ditar os rumos da política em Portugal.
Antagonismo
Por sua vez, João Manuel Lourenço Confraria Jorge e Silva, professor de políticas públicas da Universidade Católica Portuguesa, admite que o PS, o ;Bloco de Esquerda; e o PCP representam visões distintas da sociedade e têm divergências enormes em relação à dívida pública, ao equilíbrio orçamentário e ao papel do setor privado. ;Por exemplo, o PS defende uma política com orçamentos relativamente equilibrados e com redução do peso da dívida pública na economia. O PCP e o ;Bloco de Esquerda; advogam por políticas que aumentem o deficit orçamentário e a dívida pública;, afirmou.
As controvérsias podem se tornar um empecilho para António Costa ; o chefe de governo conseguiu um entendimento para que partidos de esquerda governassem, numa estratégica apelidada em Portugal de ;geringonça;. ;O premiê se mostrou bom negociador, com capacidade de dialogar com outros partidos e a sociedade civil. A eleição de hoje, por isso, se revela fundamental para sabermos se o país seguirá com a estabilidade política ou se entrará numa deriva semelhante à que ocorre na Espanha, onde as dificuldades de formar um governo parecem insuperáveis;, disse Francisco António Lourenço Vaz, professor de história da Universidade de Évora.
Um estrategista nato
Apesar do ar jovial, o primeiro-ministro António Costa, grande favorito nas eleições de hoje, é um estrategista habilidoso, que sabe como conciliar o rígido credo orçamentário europeu com a unidade da esquerda. De origem indiana e advogado, aos 58 anos, ele é um dos poucos líderes europeus de linha social-democrata que tem o vento a seu favor, desde que chegou ao poder em 2015, após ter sido derrotado na eleição anterior. Ao selar um pacto sem precedentes em 40 anos de democracia com a esquerda antiliberal, que rendeu a ele fortes críticas da direita, o ex-prefeito de Lisboa formou um governo socialista minoritário, apoiado por uma maioria parlamentar menos frágil do que o previsto. A mistura funcionou e o fã de culinária, cinema e fado chega ao fim de seu mandato de quatro anos com enorme popularidade. Entusiasta de futebol e torcedor do Benfica, é casado com uma professora e pai de dois filhos.
Conexão lusitana
José Adelino Maltez,
professor de ciência política da Universidade Católica Portuguesa
;A democracia portuguesa, de eleições livres, nasceu de uma ruptura com o antigo regime salazarista e não da transição de uma ditadura para uma democratização. Aqui, não temos de escolher dramaticamente entre Jair Bolsonaro e um outro. Não temos Trump, a extrema-direita francesa, o populismo italiano ou o separatismo do Estado espanhol. Navegamos sem furacões e sem ciclones, e queremos esquecer que o nosso principal problema, o da dívida, está dependente da geofinança, em que o principal dique que nos separa da crise é a União Europeia.;
José João Freitas Barbosa Pereira Coutinho,
professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
;Numa visão superficial, Portugal parece um oásis de esquerda no meio de um oceano de direita. Mas isso é enganador. O Partido Socialista (PS) governou com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português (PCP) ; mas o governo prolongou, por outros meios, as ;políticas de austeridade; que vinham do governo formado pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo Partido Popular (CDS). Pouco mudou. O Bloco de Esquerda e o PCP têm, nas pesquisas, quase os mesmos índices de 2015. A novidade está no fato de o PS ter conquistado muitos eleitores ao centro e até à direita.;
Francisco António Lourenço Vaz, professor de história da
Universidade de Évora
;Os partidos de esquerda têm seduzido os eleitores, porque o último governo da direita, liderado então por Passos Coelho, dirigente do PSD, e integrado também pela líder do CDS, Assunção Cristas, foi obrigado a cumprir um programa muito duro, imposto pela então designada Troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), e com cortes muito drásticos nos rendimentos das famílias e das empresas, um aumento significativo do desemprego e da emigração, sobretudo de jovens diplomados. Esse programa acabou por ditar também o descrédito da direita.;
António Costa Pinto, professor de ciência política na Universidade de Lisboa e comentarista político na TV portuguesa
;Foi graças aos inéditos acordos parlamentares com os comunistas e com o ;Bloco de Esquerda; que o PS pôde formar o governo e assegurar as condições que o fazem hoje ganhador: estabilidade política; orçamento equilibrado, em uma conjuntura de crescimento econômico que permitiu uma maior redistribuição de renda; aumento do salário minimo; e aumento de pensões. Ou seja, em troca disso, o PS manteve uma política externa e interna moderada e o receio de uma ;esquerdização; do governo não se confirmou. O mais interessante também é que o eleitorado de esquerda gostou dessa solução.;
João Manuel Lourenço Confraria Jorge e Silva, professor de economia
da regulação e de políticas públicas da Universidade Católica Portuguesa
;A experiência de governo em Portugal, nos últimos quatro anos, se explica pela conjuntura política e econômica interna. Em Portugal, depois da formação do Parlamento, é indicado um novo primeiro-ministro, que terá a incumbência de formar o governo. Se um partido tiver a maioria dos deputados, não deve haver problemas na formação do governo. No entanto, se um partido não tiver a maioria, um governo poderá ser formado com apoios pontuais à direita ou à esquerda; um governo em coligação para assegurar maioria no Parlamento; ou um sem coligação, mas com acordo.;