roupa ainda serve?
Passado meio século, o Brasil se vê às voltas com as obrigações decorrentes do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar). O instrumento foi criado no âmbito do processo que resultou na fundação da Oganização dos Estados Americanos (OEA), no pós-Segunda Guerra (1939-1945), quando os EUA estabeleceram sua hegemonia no que chamam até hoje de Hemisfério Ocidental ; as Américas. Mal ou bem, representou um esquema pelo qual Washington pôde exercer por meios ;legais; sua posição de hegemonia na vizinhança.
O foco da ação, agora, é o mesmo das últimas duas décadas: a Venezuela chavista, hoje sob governo de Nicolás Maduro. Por trás da iniciativa de invocar o Tiar, com participação de Colômbia e Brasil ; dois dos governos mais afinados, atualmente, com a política da Casa Branca sob Donald Trump ;, está a nova fase da ofensiva para tirar do caminho o sucessor de Hugo Chávez. E, secundariamente, a consolidação de um novo sistema de alianças com os governos ao sul do Rio Grande, que separa EUA e México.
Ao fim de um ciclo de regimes autoritários, na maioria comandados por militares, em alinhamento com Washington e nos parâmetros traçados pela Guerra Fria, a América Latina experimentou outras vias, com um cojunto de governos da esquerda nacionalista. Resultados à parte, também esse ciclo parece vencido. E, no caso do Tiar, o passado, diferentemente do que diz um verso do irrequieto Belchior, é uma roupa que talvez ainda possa servir.
Uma vez em campo...
Em 1965, o regime militar recém-instalado na recém-inaugurada Brasília participou com tropas em uma Força Interamericana de Paz (Fiap) costurada pelos EUA para intervir militarmente na República Dominicana. O propósito da invasão foi desalojar o governo esquerdista de Juan Bosch, eleito dois anos antes, em nome de evitar o surgimento de ;uma nova Cuba; no hemisfério. Assim como a exclusão da ilha do sistema interamericano, a intervenção na República Dominicana foi chancelada pela OEA, justamente no âmbito do entendimento do Tiar.
;.nem sempre em campo
O tratado agora ressuscitado chegou a ser mencionado em 1982, quando o Reino Unido declarou guerra à Argentina após a invasão das Ilhas Malvinas pelo regime militar de Buenos Aires, na época sob o comando do general Leopoldo Galtieri. Na ocasião, o presidente americano, Ronald Reagan, aliado da premiê britânica, Margaret Thatcher, vetou o recurso ao sistema interamericano, por recusar a caracterização da Argentina dos generais como um país agredido.
Refilmagem
Na crise atual, o pivô não se resume ao governo de Nicolás Maduro, que vem de programar e executar manobras militares na fronteira com a Colômbia. Do outro lado, o presidente Iván Duque denuncia a presença, em solo venezuelano, de milhares de combatentes remanescentes da guerrilha das Farc. determinados a retomar a luta armada contra o governo de Bogotá. O anúncio do retorno às armas, feito pelo comandante dissidente Iván Márquez, teria sido filmado sob a proteção do regime chavista de Caracas, segundo Duque. Foi diante da ameaça colombiana de dar combate aos núcleos remanescentes das Farc que o governo de Caracas convocou as manobras em um setor da fronteira.
Aquecimento
A reunião convocada para discutir a ativação do Tiar ficou marcada para a próxima segunda-feira, 23 de setembro, às vésperas da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Lá, e mais ainda por conta da crise que se desenrola na América do Sul, as expectativas de muitos interlocutores do Brasil se voltam para o discurso do presidente Jair Bolsonaro ; já que cabe ao país, por tradição, fazer o pronunciamento inicial.
Será a primeira ocasião para ouvir de própria voz as colocações do capitão sobre como o Brasil se vê no cenário mundial, e como vê o próprio desenrolar dos acontecimentos. Ainda na semana passada, em visita aos EUA, o chanceler Ernesto Araújo foi alvo de atenções em uma palestra na qual procurou definir a posição do novo governo brasileiro como ;um amálgama;. A mistura descrita tem como ingredientes posições conservadoras e até moralistas, no âmbito da vida social, com preceitos liberais na prática econômica. O produto final é apresentado como um reencontro do Brasil com os ;valores ocidentais;, embora o país venha se posicionando, em particular no terreno dos direitos humanos, ao lado de monarquias autoritárias do Oriente Médio e em discordância com sócios históricos, como países europeus ou mesmo os EUA.