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Domínio do terror

Dezoito anos depois da invasão norte-americana, país está longe da pacificação e convive com atentados rotineiros. Estado Islâmico ganha espaço e alveja xiitas. Porta-voz do Talibã afirma ao Correio que grupo deseja influência em novo governo





Quando o mulá Omar, líder máximo da milícia fundamentalista islâmica Talibã, fez a ameaça, era impossível imaginar que o Afeganistão seria refém do terror pelos próximos anos. ;Em relação ao futuro dos Estados Unidos no Afeganistão, ele será de fogo, de inferno e de derrota total. Se Deus quiser, assim como foi para seus antecessores ; os soviéticos e, antes deles, os britânicos;, afirmou, em gravação de áudio divulgada em 2002, um ano depois da invasão norte-americana. A queda das Torres Gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, forçou nova ocupação do país, onde tropas soviéticas estiveram presentes entre 1979 e 1989.

Hoje, mais de 13 mil soldados dos EUA permanecem em território afegão. Apesar de Washington ter retomado negociações de paz com o Talibã, na última quinta-feira, o terrorismo segue semeando medo e mortes. O Daesh (acrônimo árabe para Estado Islâmico) encontra terreno fértil e ameaça agravar a situação de segurança no país. Em entrevista exclusiva ao Correio, Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, previu a derrota do Daesh.

Barmaz Pazhwak, especialista afegão do United States Institute of Peace, em Washington, atribui a culpa pela não pacificação ao presidente Ashraf Ghani e aos EUA. ;No entanto, há outros atores, como potências regionais (Índia, Rússia e China), que poderiam ter desempenhado um papel mais construtivo na promoção da paz;, disse à reportagem. Ele considera importante compreender o panorama do Afeganistão 18 anos atrás. ;A minha nação estava no meio de uma guerra, que começou com a invasão pela hoje extinta União Soviética, em dezembro de 1979. A infraestrutura física e social foi totalmente destruída e desintegrada;, acrescentou.

Segundo Pazhwak, apesar da derrota do Talibã, em 2001, os excessos das forças internacionais e de seus aliados locais, somada à compreensão extremamente pobre sobre as realidades locais e à má governança, deu origem a uma nova rodada de insurgência da facção. ;Para mim, a principal razão para o ressurgimento do conflito é a falta de visão clara e de objetivos por parte das tropas estrangeiras, de aliados e de elementos notórios da elite afegã, resultando em um governo extremamente fraco e corrupto. Ele não respondeu às necessidades e às aspirações da população, mas ampliou desconfiança entre as pessoas e os governos liderados por estrangeiros em Cabul;, explicou.




Sem raízes

Em relação ao Estado Islâmico, Pazhwak afirmou que a organização terrorista é desprovida de raízes sociais ou religiosas no Afeganistão. ;Ante a capacidade muito fraca do governo, os extremistas do grupo são capazes de atacar diferentes partes do país. No entanto, o Daesh é uma facção forasteira, tanto ideológica quanto socialmente. Não creio que será capaz de substituir o Talibã, que, apesar da rígida ideologia e da adesão à violência, é formado, na maioria, por afegãos.;

Ex-ministro das Relações Exteriores do Afeganistão, entre 1992 e 1996, Najibullah Lafraie admitiu ao Correio que os problemas de segurança poderiam ter sido resolvidos no início dos anos 2000, caso os EUA tivessem decidido retirar suas tropas depois da queda do Talibã. ;Os norte-americanos precisavam criar um governo mais crível do que aquele liderado pelo ex-presidente Hamid Karzai e fornecer vários tipos de assistêcia necessários para o Afeganistão;, comentou. Ele descarta que o Daesh esteja substituindo o Talibã, por entender que o primeiro não conta com o amplo apoio de que desfuta a milícia fundada pelo mulá Omar. ;Eles mantêm um território muito pequeno, e suas atividades estão focadas em alvejar principalmente os xiitas.; Na última quarta-feira, dois soldados americanos morreram durante uma operação. Em 2019, as baixas dos EUA somam 14, duas a mais que no ano anterior.


Pontos de vista


Por Najibullah Lafraie

Ocupação atraiu o extremismo

;Alguns árabes extremistas islâmicos se moveram para o Afeganistão na década de 1980, durante a ocupação soviética. Eles encontraram a oportunidade para expandir suas atividades nos anos 1990, devido a uma ;guerra interna; imposta. As boas relações estabelecidas pelo Talibã com a rede terrorista Al-Qaeda também desempenharam um papel importante para que o país se tornasse berço do extremismo.;

Ex-ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996



Por Barmak Pazhwak

País dividido pelo conflito

;A guerra no Afeganistão começou 40 anos atrás, quando a União Soviética invadiu o país. Anos de conflito deixaram o país dividido e sem um governo. O colapso do Estado de direito e o surgimento dos senhores da guerra, disputando poder e recursos, deram origem à economia baseada em atividades ilícitas, como o cultivo e o tráfico de narcóticos, o contrabando humano, a extorsão e a pilhagem de minerais.;

Especialista afegão do United States Institute of Peace (Usip, em Washington)


Três perguntas para

Zabihullah Mujahid,
porta-voz da milícia fundamentalista islâmica afegã Talibã

O Talibã está comprometido com o diálogo de paz
com o governo? Quais são suas principais demandas?
Nós estamos preparados para o diálogo intra-afegão, mas somente depois que firmarmos um acordo bem-sucedido com os Estados Unidos. No entanto, não conversaremos com a administração de Cabul como se fosse um governo, somente como um lado político. Nossa principal prioridade é encerrar a ocupação seguida pelo estabelecimento de um governo islâmico inclusivo no Afeganistão.

No último dia 17, um ataque matou 63 civis
em Cabul
e foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI).
Como vocês veem o fato de o EI se
tornar mais
ativo no Afeganistão?
Nós condenamos o ataque a Cabul. Foi um ato horrível. No entanto, isso não prova a força do Estado Islâmico. O Daesh (acrônimo árabe para o Estado Islâmico) tem um número muito limitado de integrantes. Se nos libertarmos da ocupação americana e estabelecermos um governo forte, grupos corruptos, como o Estado Islâmico, poderão ser facilmente eliminados do Afeganistão.

O Talibã está esperançoso de retomar o poder no Afeganistão?
Nossa meta ; depois do fim da ocupação ; será formar um governo forte, o qual nos inclua e a todos os afegãos, para que possamos prestar serviço à nossa pátria. Naturalmente, chegar ao poder e formar um governo islâmico que esteja em conformidade com as aspirações de nosso povo e de nosso seguidores é nosso objetivo mais fundamental. (RC)