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Presidente Vladimir Putin reforça o controle do Estado e sufoca a oposição ao reprimir protestos e deter centenas de manifestantes. Para especialistas e ativistas, o Kremlin corteja a linha autoritária desde o governo de Boris Yeltin, nos anos 1990








As palavras proferidas por Vladimir Putin em 2004, ainda durante o primeiro mandato como o homem mais poderoso da Rússia, pareciam proféticas e promissoras. ;Ninguém e nada deterá a Rússia no caminho do fortalecimento da democracia e na garantia dos direitos humanos e das liberdades;, afirmou. Quinze anos depois, o presidente comparado a um czar reforçou o controle sobre o Estado e se entrincheirou no poder às custas de repressão e, apontam seus críticos, da erosão da própria democracia.

Ontem, cerca de 700 pessoas foram presas em Moscou, segundo o grupo de monitoramento independente de protestos OVD-Info, durante uma manifestação convocada pela oposição em defesa de eleições livres. A manifestação, não autorizada, não teve a presença de líderes, depois que foram anunciadas várias condenações desde o protesto realizado no sábado anterior, também na capital russa, que terminou com 1.373 detidos, algo que não acontecia desde o retorno de Putin ao Kremlin em 2012.

A grande líder opositora que permanecia em liberdade, Liubov Sobol, uma advogada de 31 anos, foi detida poucos minutos antes do início do protesto. ;As autoridades fazem todo o possível para tentar intimidar a oposição, para assegurar que as pessoas não saiam às ruas para protestar pacificamente;, declarou Sobol, antes da detenção. Em greve de fome há três semanas, Sobol havia escapado da prisão até agora por ter um filho pequeno.

Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (CEIP, em Moscou), Lilia Shevtsova afirmou ao Correio que a perseguição aos opositores demonstra o temor das autoridades russas e de Vladimir Putin pela chamada ;síndrome de Gorby;. ;À minha mente vem a situação na União Soviética, no fim da década de 1980, quando o então presidente Mikhail Gorbachev tentou liberalizar a política. A abertura desencadeou protestos em massa que, no fim, levaram ao colapso soviético;, comentou. ;O Kremlin tem receio de repetição da mesma lógica: você abre a janela e deixa a oposição entrar na legislatura de Moscou, e isso provocará mais demandas, e a oposição exigirá a transferência de poder.;

Segundo Shevtsova, Putin não poderá retroceder nem se render, ante esse cenário. ;Ele demonstrará a mão dura;, prevê. Ela lamenta que a Rússia tenha interrompido o movimento na direção da democracia nos anos 1990, com o governo de Boris Yeltsin.;Hoje, se trata de um regime autoritário, o qual se move rumo a uma forma mais repressora;, explicou.

A especialista do CEIP acredita que tanto Putin quanto o próprio sistema não podem permitir um abrandamento do controle sobre as liberdades civis ou qualquer indício de liberalismo, por causa da ameaça contra o atual regime. ;As autoridades russas deixaram de se incomodar com a sua imagem perante a população e a comunidade internacional. No momento,
quase 58% dos russos se dizem prontos para ver Putin no Kremlin depois de 2024, quando o atual mandato se encerrar. Isso diz ao Kremlin que as pessoas podem tolerar uma guinada repressiva. Por outro lado, 49% dos moscovitas não querem a permanência de Putin no poder. Isso significa que, nas grandes cidades, os humores estão mudando;, comentou Shetvsova.

Simulacro
Um dos mais ferrenhos críticos de Putin, Andrei Piontkovsky ; ex-membro do Conselho de Coordenação da Oposição da Rússia e analista do Hudson Institute (em Moscou) ; não tem meias-palavras. ;A democracia não existe em meu país. A propaganda oficial a chama de ;democracia gerenciada;;, disse à reportagem. Na opinião dele, a ferocidade da repressão aos últimos protestos, especialmente de 27 de julho, indica que Putin está determinado a abolir mesmo o ;simulacro de democracia;. ;O regime de Putin é uma cleptocracia. Ele mesmo supervisionou uma vasta repressão aos direitos humanos e à liberdade de imprensa;, acrescentou. Piontkovsky entende que, desde o início, Putin e seu círculo buscaram criar um ;regime autoritário governado por uma cabala unida por interesses embutidos, os quais usaram a democracia para a decoração, em vez de uma bússola;. Na Rússia, todas as emissoras de TV são controladas pelo Estado. ;Agora, Putin tenta submeter a internet à censura. Eu mesmo fui acusado de extremismo pela promotoria pública por minhas publicações e estive fadado a fugir da Rússia para evitar a prisão.;

Coordenador do grupo de monitoramento OVD-Info, projeto independente de mídia sobre direitos humanos e perseguição política na Rússia, Grigory Durnovo afirmou existirem evidências de repressão política contra ativistas sociais e políticos que se opõem às autoridades. ;Isso inclui processo criminal, perseguição no âmbito do Código Administrativo e vários casos de outros tipos de agressões, como demissões, ameaças e mesmo assassinatos;, admitiu ao Correio. Ele avalia a liberdade de associação como ;muito limitada; e cita que, nos últimos anos, várias emendas de leis foram aprovadas, as quais privam os russos da possibilidade de se reunirem nas ruas de modo espontâneo. Se depender do sistema, Putin ficará no comando por vários anos. ;A manipulação eleitoral em favor do partido dominante e dos políticos pró-Kremlin é bem evidente;, declarou Durnovo.


Pontos de vista


Por Lilia Shevtsova

Impacto na
sociedade civil

;No momento em que autoridades criam, na Rússia, um Deserto do Saara na política e reprimem todos os movimentos independentes, a sociedade civil tem problemas para respirar. Isso inclui os grupos LGBTQ, que se encontram em uma situação patética devido à cultura geral bastante arcaica da população e à falta de cultura da tolerância. Além disso, o governo russo tem manipulado as eleições. Não diria que o fazem pela imagem de Putin ou para apoiá-lo. As autoridades pensam sobre os seus próprios interesses e sobrevivência. Isso significa que impedem novas forças políticas de chegarem à superfície.;
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)


Por Andrei Piontkovsky


Sobrevivência
prioritária


;A prioridade de Putin não é a própria reputação, mas sua sobrevivência política e a segurança de seus enormes bens pessoais. O descontentamento público contra o regime está crescendo. Por isso, o presidente se mostra determinado em impedir que adversários obtenham representatividade, mesmo nas assembleias locais. Nesse último estágio de sua ditadura pessoal, ele está se tornando mais perigoso não somente para nós, mas para todo o mundo. De forma deliberada, Putin tem intensificado o conflito com o Ocidente, a fim de legitimar o próprio governo ante falsas ameaças externas.;
Ex-membro do Conselho de Coordenação da Oposição da Rússia e analista do Hudson Institute (em Moscou)


Por Grigory Durnovo


Supressão de
manifestações


;As autoridades russas estão suprimindo organizações não governamentais sob as leis contra ;agentes estrangeiros; e ;organizações indesejáveis;. As ONGs que não seguirem essa legislação podem sofrer vários tipos de repressão. Elas podem ser multadas, e seus membros, processados sob o código administrativo ou penal.;
Coordenador do grupo de monitoramento do OVD-Info, um projeto independente de mídia sobre direitos humanos sobre
perseguição política na Rússia