Jornal Correio Braziliense

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Conexão diplomática

Hora de mostrar a
cara no Mercosul



O Brasil assume a presidência rotativa do bloco sul-americano justamente quando começam as conversas em torno da regulamentação e da implantação do acordo de livre-comércio recém-fechado com a União Europeia (UE). Ao fim de um período relativamente longo em que teve capacidade limitada de interferir nos assuntos do bloco, imerso na crise política iniciada com o declínio e impeachment de Dilma Rousseff e preso nas amarras do governo-tampão de Michel Temer, o país procura reassumir um papel compatível com seu peso no cenário regional ; ao menos esse. E chega no momento em que é o lado de cá do Atlântico aquele que se mostra mais composto, enquanto os sócios europeus se debruçam na própria troca de comando e no desenlace da novela do Brexit.

O desafio maior para a diplomacia brasileira é demonstrar capacidade de intervenção em um processo que exige algo mais ; um tanto mais ; do que afirmações de princípios. A negociação dos termos concretos sobre os quais se assentará futuramente o comércio entre os quatro do sul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e os 28 de além-mar. O acerto anunciado em plena reunião do G20 caiu como luva para ambas as partes, em meio aos tiroteios da guerra comercial EUA-China e de outras disputas. Encaixar o país e o Mercosul nesse momento exige capacidade de articulação, sagacidade para divisar oportunidades e senso de ocasião para renunciar a posições de momento em favor de vantagens potenciais projetadas para um futuro possivelmente além do alcance do governo de turno.

Ordem unida
O Brasil não está entre os endereços da turnê, mas está certamente no horizonte da ofensiva diplomática do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, para arregimentar os governos ao sul do Rio Grande nas cruzadas regionais e globais movidas de Washington sob a batuta de Donald Trump. O roteiro começou ontem, em Buenos Aires. Segue pelo fim de semana percorrendo Equador, El Salvador e México.

Na agenda, em especial nas duas últimas escalas, um tema de interesse regional e imediato ; a imigração. Mas na parte sul-americana, em especial, ganham destaque o contencioso de Washington com o Irã e a alegada infiltração de ;tentáculos terroristas; do regime islâmico do Irã. Ao fim de uma década e meia na qual os governos sul-americanos se distanciaram progressivamente da política dos EUA para o Oriente Médio, em especial na questão entre Israel e Palestinos, o governo Trump aposta na guinada à direita em curso no subcontinente para recompor o apoio tradicional do Hemisfério Sul às linhas gerais de intervenção traçadas pelo Departamento de Estado.

Em família
É no contexto dessa operação concatenada que continua repercutindo a iniciativa de Jair Bolsonaro de indicar o filho Eduardo, o ;03;, para a Embaixada Brasileira em Washington. Para além dos desdobramentos internos, o movimento encobre um sentido de mais longo alcance, que independe do sucesso do nomeado no processo de confirmação. Ao apontar um escolhido que posou na saída da Casa Branca com um boné da campanha de Donald Trump para a reeleição, em 2020, o presidente brasileiro deixa para além de qualquer dúvida a afinidade política com o atual ocupante da Casa Branca.

Como fica?
Por aqui, inclusive entre os demais parceiros, a recomposição em curso no Itamaraty continua sendo objeto de atenção, considerável preocupação e uma dose respeitável de polêmica. O ;escanteio; ao qual foram relegados representantes importantes da geração de diplomatas maturada nos oito anos de gestão do chanceler Celso Amorim (2003-1011), na maior parte do tempo em parceria com Samuel Pinheiro Guimarães, ameaça abrir um hiato no desenvolvimento da política externa. Mesmo os que divergiam da orientação Sul-Sul, pedra de toque dos governos petistas, alertam para o risco de uma quebra de continuidade.

Para onde vai?
Em outra frente que passa a se tornar prioritária, as atenções se voltam para a margem oposta do Atlântico, onde se define na próxima semana a troca de comando político no Reino Unido. A escolha do sucessor de Theresa May na liderança do Partido Conservador ; e, por extensão, na chefia do governo em Londres ; tem implicações que extrapolam em muito os contornos europeus. Entre o favorito Boris Johnson e o rival, o chanceler Jeremy Hunt, a diferença mais pronunciada diz respeito a como levar adiante o ;divórcio; com a União Europeia. Se o processo será negociado mais longamente ou se virá o Brexit ;duro; (sem acordo) em 31 de outubro, o desfecho da trama terá consequências para todos, começando pela Europa. E a UE, desde o acordo de livre-comércio fechado com o Mercosul, passa a ser assunto ;nosso;, em alguma medida ; ainda que seja apenas pelas consequências que o desenrolar do processo por lá devem trazer para o andamento da parceria transatlântica.